quarta-feira, 14 de maio de 2014

Véu de pirilampo - Lucila Nogueira

E o vaidoso fabricante de versos perguntou, em tom superior:
— E esses óculos escuros à noite, para que são?
E eu lhe respondi em silêncio:
— Porque a sua maldade é eterna.
E porque os poetas veem melhor na escuridão.

E eu coloquei meus óculos escuros
contra a mediocridade dos neons
contra a agressão das almas monstruosas
e a crueldade oculta nas manhãs
— na penumbra anésica anteparo
o cotidiano fogo dos dragões.

E eu ajustei meus óculos escuros
mas vi gente comendo carne humana
crianças assaltando à mão armada
cheirando cola ou sendo trucidadas
enquanto os vaidosos declamavam
a sua dor tão dicionarizada.

E eu saio à rua de óculos escuros
porque me cega a cena da injustiça
porque a lei só legítima a força
descobriu a platéia o fundo falso
do palco onde encerrou-se o último ato
e se esqueceram de fechar o pano.

E eu uso sempre os óculos escuros
porque o mundo é uma faca nas pupilas
trapézio inteiro de arame farpado
sobre a rede de areia movediça
a pele triturada e sem aplausos
prossigo encantadora de serpentes
E eu saio à noite de óculos escuros
porque meu corpo acende nessa hora
meus óculos são véu de pirilampo
me resguardam de dentro para fora
escondem o meu sol subcutâneo
— são a nave em que chego até os homens.

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