terça-feira, 29 de julho de 2014

Relógio de ponto - Alberto da Cunha Melo

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

Uma cidade - Albano Martins

Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
                      Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso

numa noite
de junho.

Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.

O espírito da letra - Bruno Tolentino

Ao pé da letra agora, em minha vida
há a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida
entre as vogais do amor... Mas como vê-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que há anos-luz se esbate sem saída,

sem prazo de morrer na luz que treme?!
O monstro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: é a letra M
a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme...

Vesperal - Carlyle Martins

No silêncio da tarde ansiosa que esmorece,
Aos lampejos do sol, que no ocaso declina,
Penso que aos céus se eleva o surto de uma prece,
Entre espirais de luz violácea e purpurina.

Verdeja muito ao longe a luxuriante  messe,
Que encanta os corações e o espírito domina.
Do açude, como espelho ideal que resplandece,
Ouço o lento rumor das águas em surdina.

Aproxima-se a noite, ensombrado o horizonte,
Vislumbra-se o perfil azulado de um monte,
De sombras um cortejo envolve a imensidade.

Hora de indecisão, de torpor, de agonia,
Em que existe inquietude, ante a morte do dia,
E espalha-se por tudo a névoa da saudade.

Tristeza - Aureliano Lessa

Dizes que meu amor te encanta a vida
Teus alvos dias, teus noturnos sonhos:
Mas tens a face de prazer tingida,
Teus lábios são risonhos!

Não podem florescer o amor e o riso
Nos mesmos lábios da paixão o fogo
Mata as rosas do rosto, de improviso
Gera a tristeza logo.

Olha: minh'alma é pálida e tristonha.
Minha fronte é nublada e sempre aflita.
Entretanto, uma imagem, bem risonha
Dentro em minh'alma habita.

Mas esse ermo sorrir que tenho n'alma.
Não é como da aurora o riso ardente:
É o sorrir da estrela em noite calma.
Brilhando docemente.

Ah! se me queres a teus pés prostrado.
Troca o riso por pálida beleza:
Mulher! torna-te o anjo que hei sonhado.
Um anjo de tristeza!

Tarde na praia - Emílio de Menezes

Quando, à primeira vez, lhe vi a grandeza,
Foi nos tempos da longe meninice.
E quedei-me à mudez de quem sentisse
A alma de pasmos e terrores presa.

Depois, na mocidade, a olhá-lo, disse:
É moço o mar na força e na beleza!
Mas, ao dia apagado e à noite acesa,
Hoje o sinto entre as brumas da velhice.

Distanciado de escarpas e barrancos,
Vejo a morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo
Das grandes fúrias e os hostis arrancos.

E ao contemplá-lo assim, tristonho digo,
Vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos:
O velho mar envelheceu comigo!

Dois corações - Anderson de Araújo Horta

Tu tens um coração dentro da boca
E tens um coração dentro do peito...
Dois corações?! Mas, que morena louca!
Perdão... Tudo que vejo está direito:

Tudo o que tens de belo está bem feito...
Somente é pouca a inspiração, é pouca,
Para cantar teu coração do peito,
Para pintar teu coração da boca!

Morena, escuta aqui: não tenho jeito
De alimentar o amor que se me apouca
Na voluptuosidade de teu leito.

Morena, escuta bem: não sejas mouca...
Quando eu pedir o coração do peito,
Oh! não me dês o coração da boca!

Tudo na vida - Fernando Namora

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Eu canto - Marisa Soveral


Eu canto o amor de ontem e o que hoje eu vivo
E ainda o que eu sonho que um dia há-de chegar
A necessidade de amar e ser amada nasceu comigo 
E em mim há-de ser sempre um fogo a crepitar

Tive amores incandescentes, sentidos com loucura
Deusa sou e todos são deuses para os meus sentidos
Deixei marcas, ninguém poderá esquecer a ventura
Da doçura de mel que existe em meus íntimos fluidos

Dei-me toda, inteira, para cada amor que seduzi
Com todos os poros dilatados no suor do prazer
Até ao zénite de toda a minha energia de colibri

Há braços que reclamam pela minha ausência
Seiva latente que não se extinguiu e quer verter
No meu corpo apetecível e feito de carência.

Contemplação - Genésio Linhares

(in POETAS DA IDADE URBANA, Ed. Do Autor, Recife/2013)

Subir as montanhas para contemplar
A natureza, o mundo e o próprio ser
Contemplar sem a frágil razão

Observar a vida pulsando nas cidades
Tentar decifrar o próprio mistério da vida
Sua insanidade e destinos da desrazão

Descerrar os véus da intocável hipocrisia
Existirá alguma verdade sólida e de luz
No meio de tanta sede de poder e ilusão?

É possível conceber alguma filosofia
Ou não precisamos dela, pois no fundo
Tudo é nada mesmo e um grande vazio?

E o que fazer com a nossa existência?
Qual o sentido de pensar o ser?
Quando o eterno é a morte e o desvario

Talvez Omar Khayyan esteja certo
O melhor mesmo é beber vinho
Com belas mulheres ao seu redor

Sugar a essência da beleza da flor
Enriquecer-se com os jardins da poesia
Vendo o sol dando luz, vida e frescor

Pois nada mais importa, tudo é loucura
Perda de tempo com o efêmero
Vale mais o sonho, eis a verdade

A única verdade sobre a terra
Pois nela os homens só fazem guerra
Deixando rios de sangue e crueldade

Façamos silêncio a ouvir os pássaros
A sentir a amplidão do singelo amor
Nada buscar só o som do universo

Sorver a cerveja como dádiva noturna
Apreciar os seios de uma bela ninfeta
Com o olhar de um poeta ao fazer um verso

Talvez Omar Khayyan tenha mais verdade
Nenhuma filosofia salvou os homens
Nenhum deus resolveu a dor e o drama

Nada. Não sabemos nada de nada
Os cientistas só arrotam arrogância
Os homens do tempo só fazem melodrama

Rubaiyat para todos os pretensos sábios
Reconheçamos a nossa ignorância
Bebamos com Khayyan o vinho dessa trama

Sob a sombra de uma frondosa árvore
Sem medo da morte. Ela é inevitável
Bebamos à vida, ao amor, o resto é lama.

Sombras - Antonio Carlos Gomes

Passado e futuro
Entrecortados
Instantes de fumaça
Profusão de cores
Dores do passado
Tempo de amores
Promessas não cumpridas
Mensagens interrompidas
Véus
Que cobrem e descobrem
Momentos gozosos
Instantes dolorosos
Lágrimas sentidas
Dores das partidas
Esperança vibrante
Futuro distante.

Porque esconde dores
Oh, sombra maldita?
Porque retorna amores
Na ferida das desditas?
Porque traz esperanças
Num sorriso de criança?

É lá
Eu e ela
A capela de juras perfeitas...
A penumbra da estrada sem fim
A cama com a roupa desfeita
Pedaços dela e de mim
A verdade e a quimera
E a vida segue
Sombria...
Nos segredos do sonhar.

Aritmética Final - Rafael Rocha

(in POETAS DA IDADE URBANA, Ed. Do Autor, Recife/2013) 

A passagem do tempo enruga e tortura
Aperta saudades e lembra a loucura
Do ontem perdido onde não mais se faz.
A passagem do tempo é madrasta da vida.
Subtrai sonhos! Torna a alma dividida
Entre o fim e o jamais.

Que merda esses cálculos impostos
A nossos corpos a trazer desgostos
Como querendo imitar ciência e arte!
Nada mais de perder tempo na paisagem
O ideal é matar essa miragem
Onde a morte nos reparte.

Sentar à mesa de um bar e sorver a noite
Nos goles das cervejas e em pernoite
Na primeira mulher a nos chamar.
Cigarro nos lábios acendendo a vida
Antes que ela diga-se consumida
Melhor se embriagar.

Idiota o homem a não saber o caminho
E a levar o corpo em oração até o ninho
Do mármore frio, branco e sepulcral.
Sábio o homem a se fazer semente
Vivendo a dizer ao seu mundo demente:
A vida é casual!

Tão estranhos são esses logaritmos
Todos dançando fora dos ritmos
Da raiz quadrada universal.
Nem o filho nem a virgem nem o deus
Explicam esses motivos de adeus
Na aritmética final!

Assim eu chamo amigos e amantes
Venham até junto a mim como bacantes
À orgia da cerveja e do prazer.
Daremos vivas e tilintar a nossos cálices
De mortais deslizando até os ápices
Dos anseios de viver.

Loucura - Valdeci Ferraz


 (in POETAS DA IDADE URBANA, Ed. do Autor, Recife, 2013)

Hoje eu vou escrever os versos mais loucos que puder.
Versos que falem da vida.
Falem da morte ou da mulher.
Versos que falem dos meus desejos
Dos meus sonhos
Ou mesmo das coisas que estão além de mim.

Por exemplo, posso dizer nessa noite desestrelada:

Minha mãe é uma estrela há milhões de anos-luz
E a minha irmã namora um açougueiro
Que se diverte colecionando imagens sacras
Encontradas nos antiquários de uma rua antiga do Recife.

Posso dizer também que a minha amada
Esqueceu o meu nome
Passando a me chamar de filhinho
E se entrega desvairada
Para compensar o lapso imperdoável.

Posso todas as coisas
Naquela que me torna um deus
Que não tem vergonha de chorar
Por força de um orgasmo
Ou de tristeza pela partida de um amigo.

Que me importa se o amor entre as mulheres
Invade a tela da minha rede
E os pássaros continuam cantando
Nas árvores que cercam meu apartamento?
Que me importa
Se os homens se anulam diante de seus deuses
Enquanto as mulheres assumem o comando do mundo?

Eu não quero escrever versos tristes como Neruda
Porque a tristeza de um poeta
Nunca é a tristeza de um poeta
E sim a tristeza da humanidade
Por não compreender a tristeza dos poetas.

Mas foi em uma noite assim desestrelada
Que vi a morte descontrair a face de meu pai

E a minha mãe segurar seus sapatos
Reclamando por ele haver bebido tanto.
Meu pai ria sobre a pedra
Como costumava rir
Quando chegava tarde da noite
Lembrando as piadas dos amigos.


Ah! Mas eu preciso escrever sobre o amigo
Que atravessou comigo
O inferno e as planícies do diamante noturno.
Que bebeu vinho, comeu pão amargo.
Conquistou a última dama da noite
E escreveu a história da última cafetina.

Posso escrever os versos mais loucos nesta noite
Porque os sóbrios, os santos, estão dormindo.
Pelas ruas perambulam apenas os loucos, os ébrios.
Os poetas, as meretrizes e os apaixonados.

Posso escrever os versos mais loucos nesta noite.
Pois dentro dela uma mulher me espera
E como o marinheiro que passa muito tempo no mar
E se joga ávido nos braços da primeira que encontra
Vou me atirar em seus braços
E deixar que as ondas do seu corpo
Sufoquem-me, e enfim eu desperte
Para viver mais um sonho.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O amor e a morte - Ariano Suassuna (com tema de Augusto dos Anjos)

Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.

ARIANO SUASSUNA – O MESTRE DO ARMORIAL
- O mestre do Armorial faleceu no Recife no dia 23 de julho de 2014 –

O mestre nasceu na cidade de João Pessoa, Paraíba, no dia 16 de junho de 1927, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar. Em 1942, a família Suassuna se transferiu para o Recife e Ariano vai estudar no Ginásio Pernambucano e depois no Colégio Oswaldo Cruz.
Em 1946, entrou para a Faculdade de Direito do Recife, onde conheceu um grupo de escritores, atores, poetas, romancistas e pessoas interessadas em arte e literatura, entre elas, Hermilo Borba Filho, com o qual Ariano fundou o Teatro de Estudantes de Pernambuco. Concluiu o curso de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em 1950.
Em agosto de 1989, foi eleito por aclamação para a Academia Brasileira de Letras, tomando posse em maio de 1990, na cadeira número 32, que pertenceu ao escritor Genolino Amado. Dramaturgo, romancista, poeta, ensaísta, defensor incansável da cultura popular, das raízes brasileiras e, especialmente nordestina, é autor de várias obras dentre elas:
Uma mulher vestida de sol” (1947): “O desertor de Princesa” (1948);  “Auto de João da Cruz” (1949); “O arco desabado” (1952); “Auto da Compadecida” (1955); “O santo e a porca” (1957); “O casamento suspeitoso” (1957); “A pena e a lei” (1959); “Farsa da boa preguiça” (1960); “A caseira e a Catarina” (1962); “Romance d´a pedra do reino e o príncipe de Sangue do Vai-e-Volta” (1971, traduzida para o inglês, alemão, francês, espanhol, polonês e holandês).

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terça-feira, 22 de julho de 2014

Leda e o cisne - Rodrigo Petrônio

Em cortinas de luz que o Sol refrata,
pousado o bico em colo de safira,
íntima só da lâmina de prata
que ao cair mata o que no ser respira

e tinge de sangue o abismo que acata
a doce faca que ao matar suspira,
como um castelo, límpida e exata,
nega-se a quem insidioso a aspira.

Revolve as asas de estrutura bela
no ar que é a asa pura de uma Ave ausente,
pende volátil e finalmente sela

com o arpão vivo que lhe orna a frente
o pacto que aos dois enfim anela:
o muro esvai-se em pétalas
........................................gemente.

Como velhice esta agonia desce - Jorge de Sena

Como velhice esta agonia desce
ao fundo em que me encontro só comigo.
E quanto amor trocara então contigo
enfim te dando o que sonhara em anos
se torna apenas máscara de enganos
com que te aceito, como amor antigo,
esse momento de ansiedade e perigo
que no teu rosto as rugas te recresce.
Tu sabes que de perto a juventude
se te queimou no acaso das entregas;
e quanto risco a tua imagem corre
quando não está tão longe que me Ilude,
mas já tão perto que de ciência chegas
a presumir a graça que não morre.
Mas porque sabes, tua graça negas.

Vogais de água - Maria Azenha

há lugares onde chegam vogais de água
lugares novos espantados que assomam à memória
por redes vertiginosas

as suas entoações concentram-se em palavras fabulosas
palavras luminosas sur-
preendidas pelos castiçais dos ii

um projecto de água

digo:

transportar o sonho de um lado para outro
abrir com toda a força um buraco nos espelhos

Terra – Belmira Besuga (in “Alentejo até aqui”)

Parece que saíram de mim
Estas espigas
Tão quentes se me apresentam
Tão quentes se me oferecem
Estas papoilas
Do ventre desta terra
Quente e doce
Altivos sobreiros
Oliveiras prenhes de azeite
Que nos alimenta e alumia
Vida que a terra nos dá ...

Sálon de pasos perdidos - Elena Medel

La tecnología carece de autoestima:
hierve con las preguntas,
le inquietan las señales
un par de ventanas más al norte.

Igual tu nombre, que borra las vocales
y no impide el divorcio de nuestras maletas.
Una estación, aperitivo, cinco días.

Con las muñecas rotas
te estoy diciendo adiós.