sábado, 23 de agosto de 2014

A Filosofia - René François Arnaud Prudhomme

(Trad. de Antônio Sales)
 
Uma triste mulher, que em si mesma, silente,
 se abisma, em pé curvada: eis a Filosofia. 
Solitária, na sombra entra, e ali se confia
 aos impulsos da fé, que em seu íntimo sente.
 
A terra, as estações, o azul resplandecente,
a volúpia falaz que da vida irradia,
tudo o que o nosso olhar percebe, a deixa fria:
ela reclama e busca um sempiterno ausente.
 
  Virgem augusta, eu te amo e o teu pesar compreendo:
de ti me aproximando, o meu hálito prendo, 
para não perturbar o teu labor divino.
 
Porque de tua boca eu espero o segredo, 
que desejo saber e de que tenho medo:
minha origem qual é, e qual é meu destino?

Quando o Grão-Lume surge do Oriente... - Vitoria Colonna

(Trad. de Delson Tarlé)
 
Quando o Grão Lume surge do Oriente 
e o negro manto desta noite afasta,
 quando na terra o gelo se desgasta, 
dissolvido ao calor de um raio ardente,
 
  a minha dor, que o sono suavemente
anestesiara, acorda mais nefasta.
E, quando aos outros o prazer se gasta,
é que revive o meu, mais docemente.
 
Assim me impele uma inimiga sorte:
procuro a escuridão, fugindo à luz, 
odeio a vida, desejando a morte.
 
O que ensombra outro olhar no meu reluz.
Se fecho os olhos, abre-se, num corte,
a dor profunda que a meu sol conduz.

A Biblioteca - Maurice Rollinat

(Trad. de Álvaro Reis)
 
Sombria, ela evocava esses bosques incultos; 
treze lampiões de ferro oblongos e ancestrais, 
sobre livros, ao pó do tempo, e à sombra ocultos, 
lançavam dia e noite uns clarões sepulcrais...
 
Sempre eu tremia quando entrava os seus umbrais;
- e entre sombras me via, e entre roucos singultos,
diante treze senis poltronas espectrais,
e sob o austero olhar de treze grandes vultos.
 
Um dia, à meia-noite, eu, de uma das janelas 
olhava, a aparecer e a desaparecer,
o duende que se esgueira e salta pelas vielas...
 
quando se me gelou de súbito a razão... 
Treze vezes ouvi o relógio bater
 no silêncio feral do maldito salão!


A Giovana - Guido Cavalcanti

(Trad. de Martins Napoleão)
 
Se eu peço a esta mulher que piedade 
não seja avessa ao coração gentil,
 dizes que sou desconhecido e vil, 
desesperado e cheio de vaidade.  

De onde te vem tão nova crueldade, 
se a quem te vê não mostras ser hostil,
mas sensata e cortês, sábia e sutil, 
e feita a modo de suavidade?
 
Minh'alma tímida e dolente chora
 nos suspiros que estão no peito e, assim, 
embebidos de lágrimas, vêm fora.
 
Parece então que um vulto de mulher 
pensativa se curva dentro em mim 
só para ver meu coração morrer.

Para os lábios que o homem faz - Mário Cesariny

Para os lábios
que o homem faz
que atraem beijos
ao redor do mundo
ficou na nossa memória
em qualquer parte    a qualquer hora
um pedaço
de pão

Promessa
que se cumpre
que alimenta
o mundo

Olhos
a exigir
uma floresta


Liberdade - Miguel Torga

— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.   

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Única - Liana Timm

nunca tive data
meu começo se deu nas dúvidas
nunca jamais esclarecidas
assim meu renascer
é um filme de suspense
com truques bem feitos
e outros desastres

Sentido - José Inácio Vieira de Melo

Os homens vinham e havia um caminho.
Continuavam, e o prumo os esperava,
e eles seguiam acreditando nisso:
sempre rumar — sempre sempre sempre.

Os homens nunca chegavam a algum lugar,
mas iam eternamente em busca de,
pois não queriam nem suportariam
entender a verdade do lugar nenhum.

Expiação - Paulo Gondim

É preciso descer, sucumbir
Ir ao fundo do poço
Como expiação
Não há como se redimir
É perdido todo esforço
É o mergulho no fosso
De toda solidão

É preciso mais que a vida
Esgota-se toda a coragem
É preciso morrer
Deixar a alma desvalida
Sem saída, sem vantagem
Sem volta dessa viagem
Em tudo, desfalecer

É a volta ao pó
À lama, ao desencanto
Ao vazio, ao descontentamento
Ao isolamento, de tudo, só
Sem trégua, sem acalanto
Ninguém lhe enxuga o pranto
Ninguém vê seu tormento

É o tiro certeiro
O golpe no peito
A marca fatal
A tomada por inteiro
Todo o sonho desfeito
Tudo perdido, sem jeito
Na reta final

Meu destino - Cora Coralina

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Joia maior!... - Miguel Russowsky

Começo por supor, nos ares, o desenho
De um verso magistral procurando agasalho.
Cabe a mim (sou poeta) encontrar um atalho
Para vê-lo nascer nos recursos que tenho.

Com as rimas gentis nas estrofes, me empenho
Em ser original (poucas vezes eu falho),
Já nem ouso explicar se é prazer ou trabalho
Exibir ao leitor as farturas do engenho.

O esmeril dá-lhe o brilho e lhe poda as arestas...
Assim é que se faz um soneto bonito,
Para ser declamado em saraus ou em festas.

Ninguém pode dizer o valor de uma joia,
Se polida não foi pela mão do perito.
É na lapidação que a beleza se apoia.

Lágrima negra - Dante Milano

Aperte fortemente a pena ingrata
entre os dedos nervosos e trementes,
e os versos jorram, claros e estridentes,
numa cascata, numa catarata!

Escrevo e canto cânticos ardentes,
enquanto dos meus olhos se desata
uma fiada de lágrimas de prata
como um colar de pérolas pendentes...

Eu canto o sofrimento, a ânsia incontida
de amor, que é a maior ânsia desta vida,
- vida a que a Humanidade se condena!

E todo o meu sofrer, todo, se pinta
neste pingo de dor -- pingo de tinta,
lágrima negra que me cai da pena.

Poema para a negra - Geraldo Bessa Victor

Deixa que os outros cantem o teu corpo
que dizem feiticeiro e sedutor,
e, na volúpia vã do pitoresco,
entoem madrigais á tua dor.

Deixa que os outros cantem teus requebros
nos passos de massemba e quilapanga,
e teus olhos onde há noites de luar,
e teus beiços que teem sabor de manga.

Deixa que os outros cantem os teus usos
como aspectos formais da tua graça,
nessa conquista fácil do exotismo
que dizem descobrir na nossa raça.

Deixa que os outros cantem o teu corpo,
na captação atónita do viço
e fiquem sempre, toda a vida, a olhar
um muro de mistério e de feitiço...

Deixa que os outros cantem o teu corpo
- que eu canto do mais fundo do teu ser,
ó minha amada, eu canto a própria África,
que se fez carne e alma em ti, mulher!

Não posso adiar o amor - António Victor Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

À Cautela - Teresa Tudela

À cautela
imitar os girassóis em cada vela

dar moinhos à farinha
e um nome à estória

lavar raízes de glicínias
e a cabeça aos vendavais

por conta das mantas rotas
da montada
massajar os cascos ao jumento
frente às frinchas
da muralha

a escumalha
espreitá-la de viés a ver
se engole ainda
fantasmas fritos
em óleo de soja modificada

há que ter recato
na montanha

rever sermões
antigos

beber limões
verdes
espremidos

ser de cá
em coisas vãs e estranhas

ser de lã
em coisas duras
como unhas

ser de distâncias nenhumas
enquanto se fia o linho
das manhãs
na harpa inaugural
deste eixo polido que somos
tangente ao eclodir
de novos dias
novos pomos
maduros nos ramos úberes
do éden
filhas não mais procrastinadas de Eva
herdeiros de corpo inteiro
de um mapa adâmico
liberto de arcas acorrentadas

asas de anjos
a bulir levemente
a túnica lisa do lago

um afago
e a mais pura perseverança
herdada intacta das romãs

no tempo
até as mais duras rochas se enternecem

e caem de joelhos
em dobras de água
na orla porosa da praia

vai haver hora

de colher o fruto
sob o olhar doce do cosmos

de apagar o espaço
com um risco de cauda de cometa

de apagar o tempo
com um frémito
de borboleta

e à cautela
entretanto
imitar os girassóis
na precisão exacta
da rota

Traições - Vanessa Buffone

Às vezes estranho sua imagem,
na cama debruçam pergunta e espanto,
e num segundo o desconheço por completo.
O escuro revela apenas um vulto,
seus cabelos grandes,
seria uma mulher?
Qual delas?
E todos e todas me invadem o sono,
olhos numa casa de vidro,
povoando o filme de possibilidades.
Quem nunca me traiu à cama foi seu cheiro,
identifico-o longe, além de todos os sentidos
ao que lhe sinto e vivo,
e estou apaixonada de novo.

Tocaia - Tânia Diniz

Ao poetinha Vinícius de Moraes

Há que se amar
em total entrega.
A alegria do prazer
em cúmplice procura
curtir os descaminhos
e a longa estrada
perder-se em nichos e fendas
sentir-se alvo e bicho
na sinuosa senda.
Da alma da mulher
à espreita
no menor gesto
a compreensão do desejo
que ele enfeita
( no tom do suspiro
o beijo no ombro que ele encerra)
e descendo vales
contornando serra
atento e entregue
à espera da morte maior
que a paixão traz,
há que, o homem,
que morrer ensaia,
para o prazer da amada
estar sempre de tocaia.