domingo, 31 de maio de 2015

IDADE - Andréa de Barros

É o tempo,
Que lhe corta os dias
O mesmo
Que me conta os casos,

Dos quandos,
Que eu não mais ouvia,
Aos comos
Sem porquês dos atos.

É dele
Meu desenho à pele,
O mapa pelo qual escapo
Da velha juventude eterna.

Ao tempo
Meu melhor bom dia.
Sem medo do que o sol me tira
Me farto do que a luz me soma.

SINFONIA - Araci Barreto


Por te amar, sofro.
Por covardia, calo.
Conquistar-te, tento.
Tua indiferença, agüento.
Em tua vida, vivo.
Por teu carinho, morro.
O teu amor, quero.
Sem conseguir, choro.
E a tentar, volto.
Mais infeliz, fico.
Pra disfarçar, canto.
O meu sofrer, aumento.
Para teus braços, corro.
Arrependida, paro.
Meu coração, estalo.
E, só em ti, penso.
Pensando assim, adormeço.
Nos meus sonhos, falo.
Acho que até, choro.
Te enamorar, espero.
Com nervosismo, fumo.
E, sem querer, me enfureço.
Meus sentimentos, amarro.
Penso em pegar-te, a laço.
Em amarrar-te, seguro.
Pra declarar-me, ensaio.
Minha vontade, estraçalho.
Mas, ao te ver, esmoreço.
Assim vivendo, me engano.
Pra suportar, minto.
Por paciência, oro.
Felicidade, finjo.
E sem você, anoiteço.

CONSCIÊNCIA – Ada Ciocci

Neste exato momento, porém,
Sei e sinto também,
Que apesar de ter sido simples criatura
Da que cuidam bem da casa,
Dos filhos, das amizades e do marido,
E de contar histórias para outros lerem,
Nada fiz de especial,
Assim, como, por exemplo,
Um feito patriótico.

Isso, porém, no momento,
Pouco importa.

O que está mesmo pra valer incomodando
É não saber eu, quando é que nossos políticos,
Deputados, senadores e ministros
Irão descobrir a maneira certa
Para libertarem a nossa gentil Pátria amada Brasil
Do jugo norte-americano.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O BARRO – Adília Ribeiro Quintellas

O barro
O barro vermelho
Recobre os pés e o cabelo
Embota as ideias, que viram pedras

O barro emoldurando as ruas
Barro nas minhas mãos e nas tuas

O barro no vento
Nevoeiro vermelho

No ar confuso tua imagem difusa
Quilômetros de estradas de barro
O carro fica vermelho
Até chegar a ti, não longe

Sobre a estátua, barro que imita o bronze
Mas se desfaz na chuva
Vira rio de lama
Que fica lá parado, secando
Até virar deserto

Mais um dia de espera
Meus poros duros de barro sufocam
O suor tem que atravessar paredes
Lágrimas, nem pensar

O vento começa a soprar
Vai me cobrir de barro
Até eu sumir
Vou virar parte do chão
Vou ser um fóssil
Memória da solidão

SILÊNCIO CÓSMICO - Rafael Rocha

Do livro “Poemas Escolhidos”

Sou o estranho homem da madrugada
Viandante do silêncio cósmico noturnal
Como se a buscar partilhar a solidão
Em ondas de estrelas fugitivas e sombrias

O poema é escrito como uma companhia
A esse estranho homem da solidão
A qual ninguém deseja compartilhar

Ana, Carmem, Beatriz, Patrícia e Maria
Deram andanças vãs no cosmos infinito
Nas camas e nos postes sem luzes das ruas
E nem sequer puderam compartilhar a solidão

Falaram da existência de estrelas quentes
Dentro do frio silêncio cósmico da madrugada
Quando Nosferatu inicia sua jornada de sangue

O estranho homem esqueceu os nomes dos antigos
A se embebedarem consigo nas mesas dos bares
Como em busca de partilhar a vida vazia
Em espumas e em fumaças de cigarros baratos

Continua em trâmite de compartilhamento
Dentro dessa solidão do nada de onde veio
E para onde vai sem vontade de ir.

sábado, 16 de maio de 2015

PORÇÕES – Gláucia Lemos


sou feita de terra e nuvem 
desta varanda amarela 
faço versos e olho a rua. 

Ao céu cresce o meu pedaço 
nuvens, bruma, sonho, espaço 
como em tempos ancestrais. 

Andando na terra nua 
vai minha porção mulher 
a mesma que as cordilheiras 
viram em onças e ovelhas 
desde antes de mim, de ti, 
e de tudo o que sabemos. 

Enquanto em palavras canto 
meu espanto 
que é tamanho 
ante a turba, a bala, a morte, 
ante os mistérios da vida 
e os sonhos de um paraíso, 
entrevejo temerosa, 
como chuva na varanda 
no pó que pisam meus dedos, 
a minha porção mulher. 

Deisa suores dos joelhos, 
do seu dorso, dos seus seios, 
do seu corpo em exaustão. 

Deixa um hálito cansado 
de lembranças empaladas 
do que ontem se esperou 
dos mofos de uma verdade. 

Pés de mulher, carne-viva, 
muito sangrados no chão.

A UM AUSENTE – Carlos Drummond de Andrade

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

A MERETRIZ - Augusto dos Anjos


A rua dos destinos desgraçados
Faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da danação carnal... Lúbrica, à lua,
Na sodomia das mais negras bodas
Desarticula-se, em coréias doudas,
Uma mulher completamente nua!

É a meretriz que, de cabelos ruivos,
Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma esteira pública, recebe,
Entre farraparias e esplendores,
O eretismo das classes superiores
e o orgasmo bastardíssimo da plebe!

É ela que, aliando, à luz do olhar protervo,
O indumento vilíssimo do servo
Ao brilho da augustal toga pretexta,
Sente, alta noite, em contorções sombrias,
Na vacuidade das entranhas frias
o esgotamento intrínseco da besta!

É ela que, hirta, a arquivar credos desfeitos,
Com as mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos, por fim, a âmbulas moles,
Sofre em cada molécula a angústia alta
De haver secado, como o estepe, à falta
Da água criadora que alimenta as proles!

É ela que, arremessada sobre o rude
Despenhadeiro da decrepitude,
Na vizinhança aziaga dos ossuários
Representa, através dos meus sentidos,
A escuridão dos gineceus falidos
E a desgraça de todos os ovários!

Irrita-se-lhe a carne à meia-noite.
Espicaça-a a ignomínia, excita-a o açoite
Do incêndio que lhe inflama a língua espúria.
E a mulher, funcionária dos instintos,
Com a roupa amarfanhada e os beiços tintos,
Gene instintivamente de luxúria!

Navio para o qual todos os portos
Estão fechados, urna de ovos mortos,
Chão de onde uma só planta não rebenta,
Ei-la, de bruços, bêbada de gozo
Saciando o geotropismo pavoroso
De unir o corpo à terra famulenta!

Nesse espolinhamento repugnante
O esqueleto irritado da bacante
Estrala... Lembra o ruído harto azorrague
A vergastar ásperos dorsos grossos.
E é aterradora essa alegria de ossos
Pedindo ao sensualismo que os esmague!

É o pseudo-regozijo dos eunucos
Por natureza, dos que são caducos
Desde que a Mãe-Comum lhes deu início...
É a dor profunda da incapacidade
Que, pela própria hereditariedade
A lei da seleção disfarça em Vício!

É o júbilo aparente da alma quase
A eclipsar-se, no horror da ocídua fase
Esterilizadora de órgãos... É o hino
Da matéria incapaz, filha do inferno,
Pagando com volúpia o crime eterno
De não ter sido fiel ao seu destino! –

É o Desespero que se faz bramido
De anelo animalíssimo incontido,
Mais que a vaga incoercível na água oceana...
É a Carne que, já morta essencialmente,
Para a Finalidade Transcendente
Gera o prodígio anímico da Insânia!

Nas frias antecâmaras do Nada
O fantasma da fêmea castigada,
Passa agora ao clarão da lua acessa
E é seu corpo expiatório, alvo e desnudo,
A síntese eucarística de tudo
Que não se realizou na Natureza!

Antigamente, aos tácitos apelos
Das suas carnes e dos seus cabelos,
Na óptica abreviatura de um reflexo,
Fulgia, em cada humana nebulosa,
Toda a sensualidade tempestuosa
Dos apetites bárbaros do Sexo!

O atavismo das raças sibaritas,
Criando concupiscências infinitas
Como eviterno lobo insatisfeito;
Na homofagia hedionda que o consome,
Vinha saciar a milenária fome
Dentro das abundâncias do seu leito!

Todas as libidinagem dos mormaços
Americanos fluía-lhe dos braços,
Irradiava-se-lhe, hírcica, das veias
E em torrencialidades quentes e úmidas,
Gorda e escorrer-lhe das artérias túmidas
Lembrava um transbordar de ânforas cheias.

A hora da morte acende-lhe o intelecto
E à úmida habitação do vício abjeto
Afluem milhões de sóis, rubros, radiando...
Resíduos memoriais tornam-se luzes,
Fazem-se ideias e ela vê as cruzes
Do seu martirológio miserando!

Indícios atrofiados de ética, ânsia
De perfeição, sonhos de culminância,
Libertos da ancestral modorra calma,
Saem da infância embrionária e erguem-se, adultos,
Lançando a sombra horrível dos seus vultos
Sobre a noite fechada daquela alma!

É o sublevantamento coletivo
De um mundo inteiro que aparece vivo,
Numa cenografia de diorama,
Que, momentaneamente luz fecunda,
Brilha na prostituta moribunda
Como a fosforescência sobre a lama!

É a visita alarmante do que outrora
Na abundância prospérrima da aurora,
Pudera progredir, talvez, decerto,
Mas que, adstrito a inferior plasma inconsútil,
Ficou rolando, como aborto inútil,
Como o abutre do deserto!

Vede! A prostituição, ofídia aziaga
Cujo tóxico instila a infâmia, e a estraga
Na delinqüência assaz ainda impune,
Agarrou-se-lhe aos seios impudicos
Como o abraço mortífero do Fícus
Sugando a seiva da árvore a que se une!

Ser meretriz depois do túmulo! A alma
Roubada à hirta quietude da urbe calma
Onde se extinguem todos os escolhos;
E, condenada, ao trágico ditame,
Oferecer-se à bicharia infame
Com a terra do sepulcro a encher-lhe os olhos!

sábado, 2 de maio de 2015

NUVENS – Mikhail Yurevitch Lermontov

Tradução Jorge de Sena

Ó nuvens pelos céus que eternamente andais!
Longo colar de pérolas na estepe azul,
exiladas como eu, correndo rumo ao sul,
longe do caro norte que, como eu, deixais!

Que vos impele assim? Uma ordem do Destino?
Oculto mal secreto? Ou mal que se conhece?
Acaso carregais o crime que envilece?
Ou só de amigos vis o torpe desatino?

Ah não: fugis cansadas da maninha terra,
e estranhas a paixões e ao sofrimento estranhas
eternas pervagais as frígidas entranhas.
E não sabeis, sem pátria, a dor que o exílio encerra.

MUSA - Anna Akhmátova

Tradução de Renato Suttana

Quando à noite eu espero a sua vinda,
numa balança a minha vida pende.
Que é a honra, a liberdade, a juventude?
Fumo que de um cachimbo se desprende.

Veio, jogando o manto para trás,
e uma atenção cordial me concedeu.
“Foste – eu lhe disse – quem ditou a Dante
as páginas do Inferno?” E ela: “Fui eu.”

AGORA NÃO TEM MAIS VOLTA – Serguei Iessiênin

Tradução de Pablo Polese

Sim! Está decidido, agora não tem mais volta
Deixei minha querida terra natal,
as folhas de álamos carregadas pelo vento
nunca mais cairão sobre mim,
não sentirei novamente o toque das folhas,
nem ouvirei seus sussurros, é verdade.
Nossa antiga casa vai vir abaixo na minha ausência,
e o meu velho cão já há tempos está morto.
Nas frias e tortuosas ruas de Moscou
caminho para a morte, esperando conhecer a misericórdia
desse Deus que tem me julgado.
Amo demais essa cidade de olmos,
cheia de prédios decrépitos e casas velhas.
Um sonho asiático de inesquecível beleza
onde repousam templos cobertos de ouro.
À noite, quando a luz da Lua, dissipada,
Brilha por sobre a cidade… diabos!
O inferno sabe como queimar!
Estou a andar pelas ruas, cabisbaixo,
Rumo à taverna mais próxima, para um drinque ou dois.
É um antro sinistro e barulhento esse lugar,
Apesar disso, durante a noite toda,
até de madrugada,
leio poemas para as meninas que vão se prostituir,
enquanto me embebedo e elas se divertem
prazerosamente com os ladrões.
Meu coração começa a palpitar com mais e mais força,
então choro, finalmente perdendo a compostura,
e falo, meio sem propósito, meio fora de contexto:
“Assim como vocês, eu falhei e me perdi,
mas pra mim já não há caminho de volta”.
Minha antiga casa desmoronou na minha ausência,
meu velho cão já há tempos está morto.
Nas frias e tortuosas ruas de Moscou
estou fadado a morrer, esperando a misericórdia
desse Deus que tem me julgado.