quinta-feira, 11 de junho de 2015

BARRO NU (OS ARAUTOS NEGROS) - César Vallejo

Tradução de Jorge Henrique Bastos

Erguem-se visagens fúnebres do lábio
Como batráquios terríveis na atmosfera.
Pelo Saara azul da Substância
Caminha um verso cinza, um dromedário

Fosforece um esgar de pesadelos cruéis.
E o cego que morreu repleto de vozes
De neve. Madrugar o poeta, o nômade,
É um dia áspero para ser homem.

As horas seguem febris e abortam
Nos ângulos rubros séculos de ventura.
Quem corta o fio, quem desfaz
Impiedosamente os nervos,
Cordéis já gastos, na tumba?

Amor! E tu também. Pedras gastas
Se delineiam na tua máscara que se rasga
Contudo, a tumba é
Um sexo de mulher que conquista o homem!

A UM PAPA – Píer Paolo Pasolini

Tradução de Pedro Heise e Cide Piquet


Poucos dias antes de você morrer, a morte
havia posto os olhos sobre um seu coetâneo:
aos vinte anos, você era estudante, ele operário,
você nobre, rico, ele um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre os dois
na velha Roma que voltava a ser tão nova.
Eu vi os seus restos, pobre Zucchetto.
Zanzava de noite bêbado perto do Mercado,
e um bonde que vinha de San Paolo o apanhou
e arrastou um tanto pelos trilhos entre os plátanos:
ficou ali algumas horas, embaixo das rodas:
algumas pessoas se juntaram ao redor para olhar,
em silêncio: era tarde, havia poucos passantes.
Um dos homens que existem porque você existe,
um velho policial escrachado como um louco,
a quem se aproximava muito gritava: “Fora, cambada!”.
Depois veio o automóvel de um hospital para levá-lo:
o povo foi embora, ficaram uns trapos aqui e ali,
e a dona de um bar noturno pouco adiante,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha sido pego por um bonde, tinha morrido.
Poucos dias depois você morria: Zucchetto era um
do seu grande rebanho romano e humano,
um pobre bebum, sem família e sem cama,
que vagava de noite, vivendo quem sabe como.
Você não sabia nada sobre ele: como não sabia nada
sobre outros milhares de cristos como ele.
Talvez eu seja cruel ao me perguntar por que razão
pessoas como Zucchetto eram indignas do seu amor.
Existem lugares infames, onde mães e crianças
vivem numa poeira antiga, numa lama de outras épocas.
Não muito longe de onde você viveu,
à vista da bela cúpula de São Pedro,
há um desses lugares, o Gelsomino…
Um morro partido ao meio por uma pedreira, e embaixo,
entre um canal e uma fila de prédios novos,
um monte de construções miseráveis, não casas, mas pocilgas.
Bastava apenas um gesto seu, uma palavra,
para aqueles seus filhos terem uma casa:
você não fez um gesto, não disse uma palavra.
Não lhe pediam que perdoasse Marx! Uma onda
imensa que se refrata por milênios de vida
o separava dele, da sua religião:
mas na sua religião não se fala de piedade?
Milhares de homens sob o seu pontificado,
diante dos seus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Você sabia, pecar não significa fazer o mal:
não fazer o bem, isto significa pecar.
Quanto bem você podia ter feito! E não fez:
nunca houve um pecador maior que você.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

HORTÊNCIAS (Poema Homenagem) – Silas Corrêa Leite


ontem eu vi Oscar Niemeyer
numa avenida paulista
tomava caldo-de-cana
como se espremesse frutas
bebia daquela doçura
como quem apalpa um halo
e olhava os horizontes
querendo, neles, pôr calço
ontem eu vi Oscar Niemeyer
que é menor que gabirova
pequeno como candura
sem pose de ser medida
tinha sonhos sem cimento
estática como um emissor
e punha reparos nas coisas
da Augusta Sampa embrutecida
ontem eu vi Oscar Niemeyer
descendo a Rua Augusta
(ou seria a Mário de Andrade
pois que não apreciei direito?)
tinha palavras em si
como cabem na videira
e ouvia com prazeirança
os ruídos do progresso
ontem eu vi Oscar Niemeyer
entre uma bodega , um circo
nem preciso dizer direito
tenho certeza , era ele
parecia com Juscelino
um pouco com Burle Marx
mas era tão brasileirinho
como uma palmeira ao sol
(meus alunos não acreditaram ;
minha mulher disse - é incrível
- mas eu só acredito vendo -
falou-me, sem entusiasmo)
tapei o sol com peneira
olhei para uma árvore , vi
também ela era ele sim
pois se muito me parece.
ontem eu vi Oscar Niemeyer
chispando pegar um táxi
foi-se embora antes da chuva
com sua postura Brasília
fiquei olhando seu corpo
caldo de cana-de-açúcar
depois fui camelar hortênsias
num dia de todos os santos

A UMA CADEIRA – Bruno Ramalho de Carvalho

Em conversa com a solidão,
por acidente de um fim de tarde,
descobri que meu corpo arde
de poesia sem explicação.

Decerto, outrora me acharia louco,
mas agora um bobo sem inspiração,
dedicando a ela todo o coração,
o que, um dia, a outrem dediquei tão pouco.

Assim, pela arte que em mim não morre,
e sobrevive, sim, à linha mais torta,
fiz estes versos a uma cadeira,
que, por acaso, segurava a porta.

SUFOCO – Gisele Lemper

Eu também grito.
Não para que ouças ou te comova 
minha aflição, afinal de nada me valeria 
mais uma desculpa esfarrapada
ou aquela costumeira incompreensão. 
Eu também grito.
Não para que me socorras, piedoso, 
com mentiras rebatidas naquele calor 
confuso, que critica a intensidade
e se defende de maior envolvimento. 
Porque apenas te quero inteiro
- inferno! - para dentro me desintegrar 
no delicioso prazer do meu orgasmo. 
Eu me esforço, me agrido, me exijo
em meus bons motivos, discretamente,
sem te confrontar com perguntas profundas, 
embaraçosas, cobradoras, irrespondíveis. 
Eu grito e me viro - agora sabes -
porque sufoco.

SENSUAL ALICE – Francisco Miguel de Moura

Foi na queda da minha meninice,
desaguando na minha juventude, 
que me veio à cabeça esta virtude
de te gravar no coração, Alice.

Tu brincavas na areia, ondas salgadas
vinham quebrar-se nos teus pés sem pejo.
Aproveitar meu prematuro ensejo
seria um céu. Perdi nossas pegadas.

Sonho as curvas da praia, as curvas tuas
como o seio nascente que guardavas...
De tantas coisas desejei só duas.

Na noite, as mãos levíssimas de sondas...
E entre séria e risonha te afastavas,
levada docemente pelas ondas.

terça-feira, 2 de junho de 2015

LEMBRETE DO ADMINISTRADOR


OS QUE DORMEM AO VENTO - Hilda Doolittle

Tradução de Adriano Scandolara

Brancos
mais que a crosta
que a maré arrasta,
ardem-nos a areia revirada
e as conchas partidas.

Não dormimos mais
ao vento —
despertamos, fugindo
ao portão da cidade.

Arranquem —
arranquem um altar pra nós,
puxem os rochedos,
empilhem-nos com pedras brutas —
não dormimos
mais ao vento,
propiciem-nos.

Entoem um ululuar
que nunca cessa,
tracem um círculo e homenageiem
com uma canção.

Quando o rugir da vaga em queda
a interromper,
jorre medido o verbo
de águias-marinhas e gaivotas
e aves marinhas clamando
discórdias.

UMA PONTINHA – Charles Simic

Tradução de Adriano Scandolara

Tive um papel pequeno, sem falas
Num épico sangrento. Eu era parte da
Humanidade bombardeada e em fuga.
Ao longe nosso grande líder
Cantava como um galo de uma varanda,
Ou será que era um grande ator
Se passando por nosso grande líder?

Aquele ali sou eu, eu disse à criançada.
Estou espremido entre o homem
Que ergue as duas mãos cheias de ataduras
E a velha senhora boquiaberta
Como se nos mostrasse um dente

Que doía demais. As cem vezes
Em que rebobinei a fita, nem uma única vez
Eles conseguiram me ver
Naquela turba cinza imensa
Que era igual a qualquer outra turba cinza imensa.

Zarpem já para a cama, eu disse enfim.
Eu sabia que estava lá. Um take só.
Só dava tempo para isso.
Enquanto nos estarrecíamos na cidade em chamas,
Mas é claro que isso eles não filmaram.

ANTEPASSADOS - Tamara Kamenszain

Tradução de Carlito Azevedo & Paloma Vidal


Aonde vão?
Vou com eles descendo de meus filhos
até onde queiram chegar astros circulantes
se na hora do nascimento calcularam ascendente
não o abandonem mais.
Do Mar Negro até o Estreito
naturalizam-se comigo de mim procedem
meninos de sobrenome decomposto
viajando para serem argentinos
imigrantes por vomitar no convés
dando voltas eles nos voltam
como vinil arranhado dos beatles
da Rússia para cá
e daqui para a URSS 

donos de um deserto que avança bisavós do nada.