quinta-feira, 30 de julho de 2015

TELA NÚMERO DOIS – Valdeci Ferraz

Na terra dos homens clonados
foram extintos os espelhos
e encerrados em caixões de aço os revolucionários,
ato que se tornou inútil,
pois as palavras formaram versos
cuja força derreteu a abóbada
e se expandiu além das fronteiras.

O sangue dos dedos cortados adubaram a terra
e a mulher elevou a voz numa canção desesperada.
Os heróis voltaram aos seus quartos
e foram dormir com suas amantes
enquanto um poeta se masturbava
diante de um computador moribundo.

Das ruas, dos becos, debaixo dos viadutos,
das pontes, das marquises, dos sobrados abandonados
elevou-se o clamor das prostitutas,
dos mendigos, dos meninos de rua,
dos bêbados pedindo aos clonados
que não deixassem a poesia morrer.

Do topo das árvores surgiram
milhares de beija-flores empurrando com o bico
um general e um capitalista em direção
a um mar repleto de tubarões.
De repente, os homens clonados deram-se as mãos
e começaram a cantar liderados por um menino
que trazia em uma mão uma tesoura vermelha
e na outra uma batuta em forma de caneta.

À medida que escrevia ao vento
os homens clonados incorporavam as notas
e a canção chegava aos morros, nas favelas,
nos campos, onde as mulheres e as crianças
se punham a dançar enquanto
a esperança brilhava nos olhos dos homens.

Sobre o asfalto um grupo de seres encapuzados
tentava destruir a roda dos homens clonados
jogando sobre eles cruzes de madeiras em chamas,
em contato com as palavras que o menino escrevia
as cruzes se apagavam, desconjuntavam-se
e caíam no chão formando palavras
que só o menino maestro podia entender.

Depois que a música cessou
o menino apanhou as palavras
guardando-as dentro de um saco
que entregou para uma prostituta
conhecida como Maria Madalena.
No tempo da última trombeta será decifrado
o significado desse mistério,
disse ele com uma voz grave, porém serena.

Em seguida, o menino maestro empunhou
a tesoura vermelha e avançou sobre os encapuzados,
as cabeças cobertas de sangue rolaram pelo asfalto
e sopradas pelo vento caíram no rio que banhava a cidade.

O avesso de mim surgiu novamente
e expôs sobre as calçadas livros
cujos personagens fluíam das folhas
espantados com o tamanho dos arranha-céus
e a cor avermelhada das águas.
Que terra estranha é essa?
Perguntou um homem seco
vestido com uma armadura de lata
e armado com uma lança comprida.

Um jovem magro com ar esfomeado
se aproximou do menino.
Ele tinha um relógio nas mãos
e pretendia empenhá-lo para comprar comida.
Outro senhor ofereceu uma guilhotina pela tesoura,
porém todos os olhares se voltaram
para uma mulher que
emergiu dos livros completamente nua
e ornada nos cabelos com um diadema de diamantes e rubis.

Quem é ela?
perguntaram os homens clonados,
mas ninguém ousou responder,
pois temiam fazê-la desaparecer,
tal a fragilidade de sua figura exuberante.
A mulher nua ergueu a mão num gesto solene
e todos se calaram.
Ela então subiu no palco
formado pelas madeiras das cruzes e anunciou a nova aurora.

Da sua boca fluíam estrelas e sonhos
que os homens clonados recolhiam
para alimentar os que haviam
perdido a capacidade de sonhar.
Da sua boceta negra emanava um cheiro de liberdade
razão pela qual todos compreenderam 
que ela fora amada por todos os revolucionários
que haviam escapado dos caixões de aço.

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