quinta-feira, 27 de agosto de 2015

MULHER NUA - Juan Ramón Jimenez (Tradução de José Bento)


Humana fonte bela, 
repuxo de delícia entre as coisas, 
terna, suave água redonda, 
mulher nua: um dia, 
deixarei de te ver, 
e terás de ficar 
sem estes assombrados olhos meus, 
que completavam tua beleza plena, 
com a insaciável plenitude do seu olhar? 

(Estios; verdes frondes, 
águas entre as flores, 
luas alegres sobre o corpo, 
calor e amor, mulher nua!) 

Limite exato da vida, 
perfeito continente, 
harmonia formada, único fim, 
definição real da beleza, 
mulher nua: um dia, 
quebrar-se-á a minha linha de homem, 
terei que difundir-me 
na natureza abstrata; 
não serei nada para ti, 
árvore universal de folhas perenes, 
concreta eternidade!

MULHER NUA - Gilka Machado (1893-1980)

Alma de pomba - corpo de serpente,
enche de adejos e rastejos
teu ambiente,
caiam em torno a ti pedras ou flores
de uma contemplativa multidão:
de lisonjeiros e de malfeitores
cheias as sendas da existência estão.
 
Toda de risos tua boca enfeita
quando te surja um ser sincero, irmão;
e sejas sempre pura, espelhante e perfeita,
na verdade da tua imperfeição.
Musa satânica e divina
ó minha Musa sobrenatural,
em cujas emoções, igualmente, culmina
à indução do Bem, a tentação do Mal!
Em teus meneios lânguidos ou lestos
expõe ao Mundo que te espia
que assim como há na Dança a poesia dos gestos,
há nos versos a dança da Poesia.
 
Dança para esse gozo,
o grande gozo maternal da Terra,
que te fez sem igual,
e, envaidecida,
em seu amor te encerra,
amando em ti a sua própria vida,
sua vida carnal e espiritual.
Torce e destorce o ser flexuoso
ó Musa emocional!
 
Maneja os versos de maneira tal
que eles fiquem pelos séculos dispersos,
com os ritmos da existência universal.
E a dançar, a dançar,
num delicioso sacrifício,
patenteia a nudez desse teu ser ante o sereno altar
do deus que te domina.
 
Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?
dança, porém, não como a Salomé da lenda,
a lírica assassina: dança de um modo vivificador;
dança de todo nua,
mas que seja a nudez sensual da dança tua
a imortalização do teu glorioso Amor!

domingo, 23 de agosto de 2015

O APANHADOR DE SONHOS – Valdeci Ferraz

Eu vi um homem com um saco nas mãos
Recolhendo os sonhos abandonados
Pelos homens vazios.
Seus pés estavam cheios de bolhas
E chorava cada vez que encontrava um sonho.
Segui-o de longe
Temendo que minha presença o incomodasse.
Ele andou por muitas ruas
E ao se aproximar das pessoas
Tirava o chapéu
Não para pedir alguma coisa,
Mas como uma reverência
De alguém diante de uma autoridade.
Alguns sorriam simplesmente,
Outros faziam menção de dar-lhe uma esmola
Ainda outros fingiam não vê-lo
Depois de caminhar o dia todo
Ele tomou o caminho de casa
Atravessou uma floresta de eucaliptos
Chegando a um imenso castelo
No meio de uma clareira
Antes de entrar olhou para trás e me viu
Antes que me escondesse ele me chamou
Quer conhecer a minha casa?
A voz dele era como uma música
O portão se abriu e pude ver
Os sonhos perdidos dos homens vazios
Eu tinha a impressão que estava entrando
Em uma gigantesca tela de Dali
O primeiro sonho que vi foi uma orelha
Encravada nas asas de uma borboleta
Encontrei este em uma casa de surdos
Explicou o apanhador de sonhos
Aqui há toda espécie de sonho:
Pequenos,
Médios,
Grandes,
Loucos,
Infantis,
Obscenos,
Serenos,
Possíveis,
Impossíveis
Porque você os recolhe?
Indaguei
Porque eu confio nos homens
Eles não podem viver sem seus sonhos
Mas estes sonhos impossíveis?
É melhor um sonho impossível do que nenhum.
De repente ouvi uma grande gritaria lá fora
Subi no muro que circundava o castelo
E vi milhares e milhares de homens e mulheres
Tinham os olhos tristes e eram secos
Quem são esses?
Indaguei
Eles vieram buscar seus sonhos.

sábado, 22 de agosto de 2015

PESCA - Micheliny Verunschk


O peixe
é palavra,
é sabre
e poema,
escamas de prata.
Desliza na linha,
se perde
na água,
ondula 
num verso,
esguio,
escapa.
Seus
olhos
(sereias)
fascinam
e matam.
O leque
do rabo
te acorda
com um tapa.
O peixe
é

palavra.

BRUMAS DO NUNCA SE ESQUECER - Poema de Rafael Rocha escrito e lido no Recife, em março de 1978

(Contra a obstinação dos ditadores fardados
as estrelas luziram dentro da noite, tímidas e
envergonhadas com a desmoralização
dos seus átomos girantes)


Hoje, corpos esqueléticos
Buscam a fuga das correntes negras
No calabouço onde imolaram a pátria
E os homens simples com seus bigodes e sapatos.
A dignidade foi pisoteada no fogo dos fuzis
Em ordem unida, degredados
Os verdadeiros juízes, mortos
Os bravos defensores dos operários.
Assim, puseram a toga sobre fantasmas vesgos,
Marionetes para guardar o futuro nos bolsos
E a justiça nas escrivaninhas de boa madeira.
A terra foi loteada com os agiotas ianques
E com os internacionais do lucro fácil.
Os soldados, infantes defensores da liberdade,
Tornaram-se guardiões
Das grandes redes bancárias,
Dos monopólios e dos trustes.
As escolas foram açambarcadas
E as universidades esculhambadas;
O feijão e o trigo doados aos atravessadores
Com a condição de não faltarem
Com o juro dourado aos “luminares das estrelas”.
Ofertaram para as crianças
Pelos canais televisivos
E livros de história,
velhas mídias fascistas
e verbos de cultura alienígena,
canhões e botas rugindo
como novos salvadores.


(Chama-se a isso lavagem cerebral
que diziam em linguagem culta:
educação cívica e moral)


Fez-se a apologia do deus dos fariseus:
Um altar ao Grande Bezerro de Ouro.
Senadores e deputados e ministros
Correram a realçar as leis
Especulando com francos e dólares,
Palácios e moradias campestres,
Enquanto os reais donos da terra
Dormiam com ratos e baratas
E grandes surtos epidêmicos.
Degolaram os mais fortes humanistas
E concentraram os mais fracos
No campo dos desaparecidos.
Aos poetas tentaram cortar as asas
E a poesia insistiu em caminhar pelo mundo.
Foi preciso, pois, criar a cloaca:
As casas de sujeição e de torturas
Com uso das correntes elétricas
Nos testículos, nos ânus, nas línguas
E sobre escorregadios paus-de-araras.
Depois, criaram lacaios nas casas de esperança.
Religiões capitalistas nasceram do lucro fácil
E gritos ásperos de Cólera e medo
Surgiram das artérias do povo
Contra os idiotas “luminares das estrelas”.
No fim, criaram a lei antipátria:
Obrigação de
Subornar,
Negociar,
Infectar,
Coagir,
Coonestar,
Confinar
e especular com as raízes da terra.
E, então, dentro dessa opressão sanguinolenta
A dor/silêncio criou ecos em todos nós:
Penando sobre sete chaves, o homem
Busca romper as cercas de arame,
Suas palavras jorram violentas dos lábios,
Seus pés insistem em trazer o corpo às ruas
E por esses produtos de lágrimas e dores
Dimensão de almas violentadas
Vem a supernova vermelha deglutindo
As frágeis estrelas dos opressores de sua vida
E mercadores de sua dignidade.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

INTERROGAÇÃO - Camilo Pessanha

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
 
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do “Cântico dos cânticos”.
 
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.
 
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
 
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

DUAS ALMAS – Alceu Wamosy

Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

SONETO DA TARDE – Odylo Costa Filho

Não digo que o sol pare, nem suplico
que teu cabelo não se faça branco.
Nos segredos serenos que fabrico
vive um pouco de mago e saltimbanco.

mas te desejo simples, natural,
e que o dia na tarde amadureça.
Venceste muita noite e temporal.
Confia em que outra vez ainda amanheça.

O teu reino da infância sempre aberto
guarda o campo e os brinquedos infinitos
nas cores puras, sob o céu coberto.

Nos cajueiros, os pássaros... Os gritos
infantis... Mas a ronda neles nasce
e embranquece o cabelo em tua face.

SONETO DO ESQUECIMENTO - Ruy Espinheira

Porque me esqueces é que me anoiteço:
o coração se envolve em névoa e sombra
e um lento desalento vem e assombra
a vida em  que, sei, não desanoiteço.
amanhã, ou depois, conheço
tua força de esquecer, que põe à sombra
de frio vazio a alma que se assombra
sob  estrelas de treva . Desconheço
caminhos de fugir. E tudo quanto,
tão esquecido assim, posso fazer
é procurar não me morrer enquanto
tarda o momento de resplandecer
o sol, o mar, o sonho, a flor, o canto
dessa clara  manhã de te esquecer.

DE LONGE – Alda Lara

Não chores Mãe... Faz como eu, sorri!
Transforma as elegias de um momento
em cânticos de esperança e incitamento.
Tem fé nos dias que te prometi.

E podes crer, estou sempre ao pé de ti,
quando por noites de luar, o vento,
segreda aos coqueirais o seu lamento,
compondo versos que eu nunca escrevi...

Estou junto a ti nos dias de braseiro,
no mar...na velha ponte,... no Sombreiro,
em tudo quanto amei e quis p’ra mim...

Não chores, mãe!... A hora é de avançadas!...
Nós caminhamos certos, de mãos dadas,
e havemos de atingir um dia, o fim...

terça-feira, 18 de agosto de 2015

CHUVA DE CAJU – Joaquim Cardozo


Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
e em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.

MEU CORAÇÃO – J. G. De Araújo Jorge

Eu tenho um coração um século atrasado
ainda vive a sonhar... ainda sonha, a sofrer...
acredita que o mundo é um castelo encantado
e, criança, vive a rir, batendo palmas de prazer...

Eu tenho um coração - um mísero coitado
que um dia há de por fim, o mundo compreender...
- é um poeta, um sonhador, um pobre esperançado
que habita no meu peito e enche de sons meu ser...

Quando tudo é matéria e é sombra - ele é uma luz
ainda crê na ilusão, no amor, na fantasia
sabe todos de cor os versos que compus...

Deus pôs-me um coração com certeza enganado:
- e é por isso talvez, que ainda faço poesia
lembrando um sonhador do século passado! 

A PRIMEIRA LÁGRIMA – Luiz Delfino

Quando a primeira lágrima caindo,
Pisou a face da mulher primeira,
O rosto dela assim ficou tão lindo
E Adão beijou-a de uma tal maneira,

 Que anjos e tronos pelo espaço infindo
Qual rompe a catadupa prisioneira,
As seis asas de azul e d’ouro abrindo,
Fugiram numa esplêndida carreira.

Alguns, pousando à próxima montanha
Queriam ver de perto os condenados
Da dor fazendo uma alegria estranha

E ante o rumor dos ósculos dobrados,,
Todos queriam punição tamanha,
Ansiosos, mudos, trêmulos, pasmados...

SONETO PRESUNÇOSO – Ledo Ivo

Que forma luminosa me acompanha
quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte à foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha
que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmão, meu algoz! No perde-e-ganha
quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.

O mundo nada pesa. Atlas, sinto
a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta é mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
Se pergunto, a resposta é dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.

O BEIJA-FLOR - Tobias Barreto

Era uma moça franzina,

Bela visão matutina

Daquelas que é raro ver,

Corpo esbelto, colo erguido,

Molhando o branco vestido

No orvalho do amanhecer.

 

Vede-a lá: tímida, esquiva...

Que boca! é a flor mais viva,

Que agora está no jardim;

Mordendo a polpa dos lábios

Como quem suga o ressábio

Dos beijos de um querubim!

 

Nem viu que as auras gemeram,

E os ramos estremeceram

Quando um pouco ali se ergueu...

Nos alvos dentes, viçosa,

Parte o talo de uma rosa,

Que docemente colheu.

 

E a fresca rosa orvalhada,

Que contrasta descorada,

Do seu rosto a nívea tez,

Beijando as mãozinhas suas,

Parece que diz: nós duas!...

E a brisa emenda: nós três! ...

 

Vai nesse andar descuidoso,

Quando um beija-flor teimoso

Brincar entre os galhos vem,

Sente o aroma da donzela,

Peneira na face dela,

E quer-lhe os lábios também

 

Treme a virgem de surpresa,

Leva do braço em defesa,

Vai com o braço a flor da mão;

Nas asas d’ave mimosa

Quebra-se a flor melindrosa,

Que rola esparsa no chão.

 

Não sei o que a virgem fala,

Que abre o peito e mais trescala

Do trescalar de uma flor:

Voa em cima o passarinho...

Vai já tocando o biquinho

Nos beiços de rubra cor.

 

A moça, que se envergonha

De correr, meio risonha

Procura se desviar;

Neste empenho os seios ambos

Deixa ver; inconhos jambos

De algum celeste pomar! ...

 

Forte luta, luta incrível

Por um beijo! É impossível

Dizer tudo o que se deu.

Tanta coisa, que se esquece

Na vida!  Mas me parece

Que o passarinho venceu! ...

 

Conheço a moça franzina

Que a fronte cândida inclina

Ao sopro de casto amor:

Seu rosto fica mais lindo,

Quando ela conta sorrindo

A história do beija-flor.

domingo, 9 de agosto de 2015

PRAZERES - Antonio Carlos Gomes

Apenas três são os prazeres:
Abrigo,
Sexo,
Alimento...
O restante é medo.

Abrigo tem sentinela:
Cria a amizade...
Sexo: grande prazer
Cria a continuidade.
Alimento é trabalho:
Cria a comunidade...
O restante é medo
De um deus
Que dá e tira:
Como nada sabemos
Ou nos prostramos em adoração
Ou em orgias sem fim...

Criamos o ritual
Para espantar a morte
Caminhamos sem rumo...