sexta-feira, 30 de outubro de 2015

HÁ DIAS... – Débora Novaes de Castro

Há dias
em que os quero longos
para que da magia, a trama
vá traçando sonhos
urdindo fantasias.

Há dias
em que os quero curtos
para que num minuto
se acabem os desenganos
e a dor do desamor
desabe como areias.

Há dias
em que os quero festa
para que se deem mãos
homens e natureza
e eu cante então a certeza
de enfim saber
que existo!

domingo, 25 de outubro de 2015

III - SALMOS DA NOITE – Alphonsus de Guimaraens

Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...

- Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!

CHARCO – Mafalda Veiga

Se chover na madrugada em que eu procuro o meu caminho
Será vaga a nostalgia que outro charco faz viver
A canção lânguida e lenta de quem vai devagarinho
Em cada charco uma mágoa que não se pode esquecer

Tenho ideias que não tenho, sentimentos que não sinto
Sou imagem de outra imagem que se fez não sei de quê
Procurando a minha rota, descobrindo o que não minto
E o que monto atiro fora para nascer outra vez

Não sou forte nem sou pedra nem sou muro levantado
Nem sou obra que se erga pouco a pouco, tempo afora
Antes sou como uma ideia que se despe do passado
Uma planta enraizada na sina da sua hora

Se chover na madrugada em que eu procuro o meu caminho
E eu cair em cada charco mas seguir por onde vou
Deixarei de olhar no rio de todos mas tão baixinho
Porque é mais profundo o charco onde o que vejo é o que sou.

JOELHO - Maria Teresa Horta

Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho

Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio

Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo

Não há nada
que disfarce
de ti aquilo que vejo

Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo

E os lençóis desalinhados
como se fossem
de vento

Volto então ao teu
joelho
entreabrindo-te as pernas

Deixando a boca
faminta
seguir o desejo nelas.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

RECADO DO ADMINISTRADOR DESTE BLOG


A MINHA AMANTE – Judith Teixeira

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!...
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer...
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome...

Dizem – e eu não protesto –
Seja qual for
O meu aspecto
Tu estás na minha fisionomia
E no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
Para te esquecer...
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar
Levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo –
Não entendem deste luar de beijos...
- Há quem lhe chame a tara perversa,
Chamam-te o gênio do mal –
O meu castigo...
E eu em sobras alheio-me dispersa...

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo
Que és tu que doiras ainda
O meu castelo em ruína...
Que fazes da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos –
- Adormenta esta dor que me domina.

LEGENDA – Fernanda Botelho


Como quem sente
na legenda do presente
o fim duma história breve,
vou vivendo um sonho intacto
num pesadelo crescente
- uma luz fecunda e leve
nos olhos pardos dum gato.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

PERFUME EXÓTICO – Charles Beaudelaire (traduzido por Ivan Junqueira)


Quando, cerrando os olhos, numa noite ardente,
Respiro a fundo o odor dos teus seios fogosos,
Vejo abrirem-se ao longe litorais radiosos
Tingidos por um sol monótono e dolente.

Uma ilha preguiçosa que nos traz à mente
Estranhas árvores e frutos saborosos;
Homens de corpos nus, esguios, vigorosos,
Mulheres cujo olhar faísca à nossa frente.

Guiado por teu perfume a tais paisagens belas,
Vejo um porto a ondular de mastros e de velas
Talvez exaustos de afrontar os vagalhões,

Enquanto o verde aroma dos tamarineiros,
Que à beira-mar circula e inunda-me os pulmões,
Confunde-se em minha alma à voz dos marinheiros.

E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO – Dylan Thomas (traduzido por Fernando Guimarães)

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga, 
e a morte perderá o seu domínio.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

CONTEMPLAÇÃO - Genésio Linhares - Do Livro “Poetas da Idade Urbana”


Subir as montanhas para contemplar
A natureza, o mundo e o próprio ser
Contemplar sem a frágil razão

Observar a vida pulsando nas cidades
Tentar decifrar o próprio mistério da vida
Sua insanidade e destinos da desrazão

Descerrar os véus da intocável hipocrisia
Existirá alguma verdade sólida e de luz
No meio de tanta sede de poder e ilusão?

É possível conceber alguma filosofia
Ou não precisamos dela, pois no fundo
Tudo é nada mesmo e um grande vazio?

E o que fazer com a nossa existência?
Qual o sentido de pensar o ser?
Quando o eterno é a morte e o desvario

Talvez Omar Khayyan esteja certo
O melhor mesmo é beber vinho
Com belas mulheres ao seu redor

Sugar a essência da beleza da flor
Enriquecer-se com os jardins da poesia
Vendo o sol dando luz, vida e frescor

Pois nada mais importa, tudo é loucura
Perda de tempo com o efêmero
Vale mais o sonho, eis a verdade

A única verdade sobre a terra
Pois nela os homens só fazem guerra
Deixando rios de sangue e crueldade

Façamos silêncio a ouvir os pássaros
A sentir a amplidão do singelo amor
Nada buscar só o som do universo

Sorver a cerveja como dádiva noturna
Apreciar os seios de uma bela ninfeta
Com o olhar de um poeta ao fazer um verso

Talvez Omar Khayyan tenha mais verdade
Nenhuma filosofia salvou os homens
Nenhum deus resolveu a dor e o drama

Nada. Não sabemos nada de nada
Os cientistas só arrotam arrogância
Os homens do tempo só fazem melodrama

Rubaiyat para todos os pretensos sábios
Reconheçamos a nossa ignorância
Bebamos com Khayyan o vinho dessa trama

Sob a sombra de uma frondosa árvore
Sem medo da morte. Ela é inevitável
Bebamos à vida, ao amor, o resto é lama.

domingo, 11 de outubro de 2015

O NOVO DO NOVO – Rafael Rocha – Do Livro “Poemas Escolhidos”

Eu posso escrever um poema
Sentado à beira de um abismo
Se alguém ofertar esse tema
Pra fugir do romantismo
E no digitar dessas letras
Palavras são minhas filhas
Que de tão incestuosas
São as putas mais dengosas
Seguindo as minhas trilhas

Eu posso escrever mil versos
Nascidos de nenhum lugar
Vivendo os brilhos reversos
De algum eclipse lunar
Criado nas noites escuras
Depois de meu lamentar
A morte de um velho mundo
Sublime e muito profundo
E de ousadia exemplar

A poesia é uma arte
(De origem muito mansa?)
Ela faz a sua parte
E se bem calma descansa
É porque o seu poeta
Preferiu viver em paz
E esqueceu suas vozes
Pedindo versos ferozes
Na vida em que ele se faz

Quero a poesia felina
Feito fêmea delirante
Gritando ali na esquina
Uma canção deslumbrante
Tirando a roupa na rua
Pronta para a possessão
E pra não cair no tédio
Não existe melhor remédio
- Fazer amor pelo chão -

E assim desvairados
O poeta e a poesia
Geram versos desgarrados
Mas cruéis de nostalgia
Filhos que chegam e partem
Aos olhos dos seus leitores
Buscando-se como amantes
Para em gozos delirantes
Tornarem-se novos amores!

FINAL – Juan Gelman

Um homem morreu e estão juntando seu sangue em colherinhas,
querido juan, morreste finalmente.
De nada serviram teus pedaços
molhados em ternura.

Como foi possível
que tu fosses embora por um furinho
e ninguém tenha posto o dedo
para que ficasses?

Deve ter comido toda a raiva do mundo
antes de morrer
e depois ficava triste triste
apoiado em seus ossos.

Já te baixaram, maninho,
a terra está tremendo de ti.
Velemos para ver onde brotam tuas mãos
empurradas por tua raiva imortal.

TRESPASSE – Daniel Filipe


Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
- com naftalina - num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!

Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
- por retirada para o esquecimento...

SE AS MINHAS MÃOS PUDESSEM DESFOLHAR – Federico Garcia Lorca

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

SONETO 1 - William Shakespeare - Tradução de Jorge Wanderley

Dos raros, desejamos descendência,
Que assim não finde a rosa da beleza,
E morto o mais maduro, sua essência
Fique no herdeiro, por inteiro acesa.

Mas tu, que só ao teu olhar te alias,
Em flama própria ao fogo te consomes
Criando a fome onde fartura havia,
Rival perverso de teu próprio nome.

Tu que és do mundo o mais fino ornamento
E a primavera vens anunciar,
Enterras em botão teus suprimentos:

- Doce avareza, estróina em se poupar.
Doa-te ao mundo ou come com fartura
O que lhe deves, tu e a sepultura

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

POEMA DE ANIVERSÁRIO - Fernando Pessoa sob o heterônimo Álvaro de Campos

 No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!... (Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...