segunda-feira, 30 de maio de 2016

ALMA SIMULTÂNEA – Daniel Lima

Tenho qualquer idade em qualquer tempo:
velho agora e menino logo adiante;
aqui jovem e depois homem maduro;
às vezes nem nascido, às vezes morto.

A idade em mim rebenta impetuosa
não do tempo existido, mas das coisas
que me criam, e também que são criadas
pelo que sou e sinto em face delas.

Menino e velho sou, não sucessivo,
mas simultâneo a cada sentimento
- múltipla idade de uma alma múltipla.

Às vezes já estou morto há muitos anos,
muito depois e frio; mas às vezes
sinto que vou nascer, sinto-me antes.

HORA RUBRA - Bartira Soares

Pelas copas das árvores o sol
arrasta-se minguante para os caminhos
do oeste. Súbito um pássaro de asas
atrevidas fende o fio do tempo
e cai vertiginoso no íntimo da tarde .
Recolho em mim os escombros
dessa hora rubra e deixo que a agonia
dessa paisagem talhe em minha face
um rio e um ricto de sinuosas revelações.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

CRIANÇAS DO MUNDO - Rafael Rocha

Do livro “Poemas Escolhidos”


Nas esquinas e nos semáforos
Lá estão todos eles
Nos esgotos abertos das ruas
Vivem todos eles
Correndo em bandos nas avenidas
Lá vão todos eles
Vendendo chicletes, chocolates,
A tentar limpar pára-brisas...

O mundo deles não é teu nem meu
Nós os vemos de dentro do carro
Ou no jornal nacional global
Ou escrevendo na internet
Ou aos domingos ou às quartas
Ou nos sábados e sextas-feiras
Em todas noites loucas dessas...

Eu os vejo fumando crack
Nos cantos escuros dos prédios
Ao sair hipnotizado do cinema
Ou de uma livraria com livros
Ligados às questões sociais
E quando em casa bebo uma cerveja
Escutando um rock ou algo da MPB...

Eu os vejo em fotos de jornais
E lá vão eles em bandos na busca
De um dinheiro para a vida
De um sonho por um espaço
De jornais para serem lençóis
E mais ninguém olha para eles
Parecem viver noutra dimensão...

Nem a mulher saindo do templo
Rindo pelos pecados apagados
Livro negro no sovaco os olha
Tem medo de ter pena e sentir
Que seu deus é um merda
E que seus evangelhos são vômitos
Para encher cofres de ouro...

Lá estão eles e todos vivem
Catando o lixo na busca faminta
De um pão duro ou um osso
De chupeta nos lábios e ainda
Conseguem sorrir e ter alegria
Para brincar nas calçadas sujas
E continuar sendo sempre
Meninos e meninas do mundo.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

BALADA DO CONCURSO DE BLOIS - François Villon

Traduzido por Sebastião Uchoa Leite

Morro de sede quase ao pé da fonte,
Quente qual fogo, mas batendo os dentes;
Em meu país vivo além do Horizonte;
Junto a um braseiro tremo e fico ardente;
Nu como um verme. O traje: um presidente;
Rio no pranto e espero sem esperança;
Conforto acho na desesperança,
E alegro-me sem ter prazer algum;
tenho o poder sem força ou segurança;
E sou bem vindo a todos e a nenhum.

Só me é certo algo com que eu não conte;
nada é obscuro, exceto o que é evidente;
E sem dúvidas, fora as que defronte,
Tomo a ciência por mero acidente;
Conquisto tudo e fico dependente
Digo "Boa noite" se a aurora avança;
Deito-me sem controle em confiança;
Tenho alguns bens, mas sem vintém algum;
Sou um herdeiro mas sem ter herança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum

Descuido-me de tudo e suo a fronte
Para ter bens, sem ter um pretendente;
Com quem mais me afague, me confronte,
Quem mais me é veraz é quem mais mente;
É meu amigo que diz procedente
De um cisne alvo e um corvo a semelhança;
Em quem me nega enxergo uma aliança;
A patranha e a verdade acho comum;
recordo tudo sem a menor lembrança
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.

Príncipe brando: se isso não vos cansa,
De tudo eu sei, e a mente não alcança;
Sou faccioso e sigo a lei comum.
Que faço? o Quê? dos meus bens a cobrança,
E sou bem-vindo a todos e a nenhum.

CANÇÃO – Luís Vaz de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

quinta-feira, 19 de maio de 2016

LEGENDA DOS DIAS – Raul de Leoni


O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída, 
Leva uma crença vaga, indefinida, 
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim, 
Mais ele avança, mais distante é o fim, 
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera, 
Numa eterna esperança que se adia...

O CHANCELER – Carlos Magalhães de Azeredo

O velho chanceler é triste e carrancudo;
Sobre o peito, cismando, a calva fronte inclina,
E apoia a forte mão, que exércitos domina,
No seu melhor amigo —um grande cão felpudo.

Dir-se-ia Fausto ancião, que, concentrado e mudo,
Devorando o amargor da dúvida que o mina,
Mergulha o frio olhar pela opaca neblina,
Que, na terra e no céu, vai envolvendo tudo ...

Que ideia agita agora a mente do ministro?
O passado? o remorso? a tirania? a glória?
Um plano de vingança? um combate sinistro?

Silêncio! Ele contempla uma visão estranha:
Vê surgir, um por um, dentre as sombras da história,
Os vultos colossais das lendas da Alemanha...

EVOCAÇÃO DA ROSA – Abdias do Nascimento

(Para Yemanjá - no seu décimo aniversário)

Era uma vez uma rosa
que não era vegetal
nem rosa mineral
carecia até da cor de rosa
era uma gata formosa
negra amarela e brancosa
irrequietamente caprichosa
vestida de suave pêlo multicor
Bichana terrivelmente amorosa
dos laços dos seus encantos
nenhum gato jamais se livrou
pelos telhados miava dengosa
suspirava a noite inteira
seduzindo namoradeira
toda a gataria ao
luar da lua alcoviteira
Certo dia Rosa pariu
uma ninhada de gatinhos
de várias cores engraçadinhos
os mais lindos eram os pretinhos
mamavam de patinhas entrelaçadas
ronronando de olhos cerrados
boquinhas rosadas coladas
às rosadas tetas de Rosa
Num desses momentos
um gatão assassino
pêlo sujo desbotado
miando feio saltou felino
matando gatinho por todo lado
A mãe valente e briosa
socorri de porrete na mão
ajudei a defesa de Rosa
esbordoando estridente
perseguindo o ladrão
ele fugiu espavorido
um gatinho levando nos dentes
outros sangravam na agonia
Rosa fuzilava os olhos dementes
miando plangente a dor que lhe doía
noites a fio seu gemer se ouvia
ó doce e carinhosa Rosa
era de cortar o coração
ver-te enlouquecida
recusar enfurecida
aquela felina traição
ir definhando entristecida
até a completa inanição
Rosa cheirosa e macia
que ao morrer no
meu jardim plantei
sob a terra desapareceu
aos cuidados da minha
pobre primavera de
uma gata demente e morta
a rosa-gata enternecida
em rosa-flor floresceu
foram ambas a
única rosa que
a infância me deu

quinta-feira, 12 de maio de 2016

POEMA DO CHIQUEIRO – Rafael Rocha

Do livro “Poemas Escolhidos”

O meu país é outra república de bananas
nele a verdade vai pra baixo do tapete
deputados e senadores são sacanas
mas, realmente, eles têm grande topete
tudo porque vem dos seus eleitores
que escolhem sem olhar rosto no espelho
os ignorantes senhoras e senhores
como se cada eleito fosse um fedelho
filho da mãe e do pai e da velha putaria
e depois choram e arrancam os cabelos
devido à própria falta de sabedoria.

O meu Brasil é uma casa de meretrício
onde se goza do norte/nordeste até ao sul.
Os governados adoram um estrupício
e se deliciam quando vão tomar no cu.
O meu país é uma república de safados
criada pelos portugas d’além mar
com uma cruz cristã de zumbis desesperados
professores da velha arte de roubar
e que sempre (triste sina) marcam dias
que ao tentarmos torná-los em alegrias
servem agora só para lamentar.

O meu país é uma terra de escravos
que aplaudem todo dia seus senhores.
A casa grande hoje é “casa dos bravos”
e a senzala o “covil dos malfeitores”.
O meu Brasil não é país de homens sérios.
É a piada do eternamente universal
onde até os alienígenas de momentos
zombam das leis e dos grandes mandamentos
e se ajoelham para os deuses do dinheiro
por terem parte nesse grande chiqueiro
Judiciário, Legislativo e Senatorial.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

PARÁBOLA – Anderson Braga Horta

Trabalha diligente o velho jardineiro,
de cuja mão depende a sorte do jardim.
Cuida de cada planta e de cada canteiro
e seu árduo labor parece não ter fim.

Sua mão despejou a alegre sementeira
no solo que ela mesma adrede preparara,
e é sua mão que aduba, e escora, e poda, e joeira,
dentre as flores que cria, a mais bela e mais rara.

Mais que todos, conhece o valor do trabalho.
Mas sabe ele também que, da raiz ao galho
e do caule à corola, o anélito, a palavra,

o sopro, a seiva, o canto, a lúcida placenta
não é ele o demiurgo, o pródigo que a inventa,
e é preciso esperar que a rosa aos ventos se abra.

MAPA DO NOVO MUNDO – ARQUIPÉLAGOS – Derek Walcott


Ao cabo desta frase, choverá
À beira-chuva, uma vela.

A vela aos poucos perderá de vista as ilhas;
A fé nos portos de uma raça inteira
sumirá na neblina.

A guerra de dez anos terminou.
O cabelo de Helena: uma nuvem grisalha.
Tróia: um fosso branco de cinzas
junto ao mar onde garoa.

A garoa se reteza como as cordas de uma harpa.
Um homem de olhos nublados toma em mãos a chuva
e tange o primeiro verso da Odisseia.

CONVERSAR – Octavio Paz

Tradução Antonio Moura

Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.

O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.

A ADORMECIDA – Paul Valéry

Tradução de Augusto de Campos

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

PÁSSARO DE BAR – Rafael Rocha

Do livro – “Poemas Escolhidos”

Numa mesa de bar faço o consumo
de cervejas e petiscos e histórias
tecendo um ninho de pássaro sem rumo
na busca da invisível paixão.

Em cigarros e bebidas e fumaças
sorvo canções as mais irrisórias
e voo por sobre as telhas de tua casa
asas abertas catando uma ilusão

E sentes pouco o delírio da canção
bebida e mastigada e fumada
nos sonhos noturnais da sexta-feira

de quando eras a musa, eu o poeta
a tentar criar versos extraordinários
que nenhum outro escreveu no mundo.

MINHA MULHER É UMA FLOR – Valdeci Ferraz

Minha mulher é uma flor,
dessas que a brisa sopra de leve
temendo derrubar suas pétalas.
Ela mantém o lar sempre perfumado
e sua presença traz luz ao ambiente.
Ela adora a chuva no fim da tarde,
mas não dispensa o sol na manhã seguinte.
À noite, enquanto ela dorme,
escuto os beija-flores bicando o vidro da janela,
querendo sugar o seu néctar.

Quando me deito ao seu lado
me sinto um tronco de árvore, velho, sujo, enlameado.
Temo esmagá-la com meus dedos obscenos,
mas a seiva que escorre do seu corpo é tão forte
que me transformo em um menino.
E como menino, lembro-me de minha mãe,
que também era uma flor.
As duas flores se fundem
e surge a figura de uma fada.
Aninho-me em seus braços
e desafio os fantasmas, os dragões,
os vampiros e os lobisomens.

Minha mulher é uma flor. 
Gosta de me ouvir em sussurro
e espalha lã por onde passa. 
Esse é o caminho do meu amado,
ela parece dizer para todos os homens e mulheres. 
Engulo a corda e estufo o peito.
Satisfeito, prometo ser a fonte 
onde ela possa sempre se banhar. 
Prometo ser uma nuvem para livrá-la do sol quente. 
Prometo segurar o trovão para não vê-la estremecida.
Prometo segurar o tempo para não vê-la murchar. 
Prometo até na outra vida 
nascer um cravo e por ela esperar.

LAMENTO – Antônio Carlos Gomes

O tempo não passa:
Um lamento...
Reclamamos o vigor perdido.
O tempo está lá
Onde sempre esteve
Imutável.

Buscamos o que fomos
[como que se tivesse passado]
Chamamos isto de idade:
- Na verdade
O tempo fica
O vigor passa.

Eternos, dentro da finitude
Recordar é a única atitude.
Tudo que sobrou
Em um tempo estático
Que não nos olha.

domingo, 1 de maio de 2016

OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO – Vinicius de Moraes

 Homenagem de PALAVRAS DE ATEOP a todos os trabalhadores do Brasil e do Mundo 

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.