quarta-feira, 28 de setembro de 2016

DOIS SONETOS DE ALBERTO DE OLIVEIRA

CHEIRO DE ESPÁDUA

Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.

Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.

E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!

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O PIOR DOS MALES


Baixando à Terra, o cofre em que guardados 
Vinham os Males, indiscreta abria 
Pandora. E eis deles desencadeados 
À luz, o negro bando aparecia. 

O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia, 
Todos os Vícios, todos os Pecados 
Dali voaram. E desde aquele dia 
Os homens se fizeram desgraçados. 

Mas a Esperança, do maldito cofre 
Deixara-se ficar presa no fundo, 
Que é última a ficar na angústia humana... 

Por que não voou também? Para quem sofre 
Ela é o pior dos males que há no mundo, 
Pois dentre os males é o que mais engana. 

REFÚGIOS PARA GUARDAR MEU PAI - Patrícia Claudine Hoffmann (in memoriam)


A saudade desenha seus estiletes, pai.
De dentro para fora.

Teus molinetes, agora
ornamentam a casa
com inconformável beleza:
procuram tua pesca.

Nenhuma fresta entre nós.
Nenhuma isca.

Na antifesta de estar,
o mar desfeito
não comemora comigo:
estamos sós.

E não há pacto
de anzóis que capture
a precocidade de tua ausência
ou te devolva
como devolvíamos os peixes para a água.
— Lembras?

Apareceram uns cansaços nas paredes.
Onde antes teu descanso
sobre o dorso das redes,
agora memórias rendadas
avarandam a chuva
em chamamento.

Enquanto o vento motiva algum sol,
embala-me ainda teu riso
nos braços já fracos
da infância.

- As tarrafas cresceram, pai.
Ainda não aprendi a dobrá-las.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

CINCO POEMAS DE FLORBELA ESPANCA

A DOIDA

A Noite passa, noivando.
Caem ondas de luar.
Lá passa a doida cantando
Num suspiro doce e brando
Que mais parece chorar!

Dizem que foi pela morte
D’alguém, que muito lhe quis,
Que endoideceu. Triste sorte!
Que dor tão triste e tão forte!
Como um doido é infeliz!
Desde que ela endoideceu,
(Que triste vida, que mágoa!)
Pobrezinha, olhando céu,
Chama o noivo que morreu
Com os olhos rasos d’água!
E a noite passa, noivando.
Passa noivando o luar:
“Num suspiro doce e brando,
Podre doida vai cantando
Que esse teu canto, é chorar!”
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A MINHA TRAGÉDIA

Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida.
Parece que a minh′alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade!

Ó minha vã, inútil mocidade,
Trazes-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos, a saudade!...

Eu não gosto do sol, eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!

Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!... 
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AMIGA

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei p′rà minha boca!... 
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ERRANTE

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...

Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...

Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!... 
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DESEJO

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!

Que seja a tua mão tão branda como a neve
Que feche o meu olhar numa carícia leve
Em doce perpassar de pétala de lis...

Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!...
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!...