sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O CÃO SEM PLUMAS – João Cabral de Melo Neto

I. Paisagem do Capibaribe 
---

A cidade é passada pelo rio 
como uma rua 
é passada por um cachorro; 
uma fruta 
por uma espada. 

O rio ora lembrava 
a língua mansa de um cão, 
ora o ventre triste de um cão, 
ora o outro rio 
de aquoso pano sujo 
dos olhos de um cão. 

Aquele rio 
era como um cão sem plumas. 
Nada sabia da chuva azul, 
da fonte cor-de-rosa, 
da água do copo de água, 
da água de cântaro, 
dos peixes de água, 
da brisa na água. 

Sabia dos caranguejos 
de lodo e ferrugem. 
Sabia da lama 
como de uma mucosa. 
Devia saber dos polvos. 
Sabia seguramente 
da mulher febril que habita as ostras. 

Aquele rio 
jamais se abre aos peixes, 
ao brilho, 
à inquietação de faca 
que há nos peixes. 
Jamais se abre em peixes. 

Abre-se em flores 
pobres e negras 
como negros. 
Abre-se numa flora 
suja e mais mendiga 
como são os mendigos negros. 
Abre-se em mangues 
de folhas duras e crespos 
como um negro. 

Liso como o ventre 
de uma cadela fecunda, 
o rio cresce 
sem nunca explodir. 
Tem, o rio, 
um parto fluente e invertebrado 
como o de uma cadela. 

E jamais o vi ferver 
(como ferve 
o pão que fermenta). 
Em silêncio, 
o rio carrega sua fecundidade pobre, 
grávido de terra negra. 

Em silêncio se dá: 
em capas de terra negra, 
em botinas ou luvas de terra negra 
para o pé ou a mão 
que mergulha. 

Como às vezes 
passa com os cães, 
parecia o rio estagnar-se. 
Suas águas fluíam então 
mais densas e mornas; 
fluíam com as ondas 
densas e mornas 
de uma cobra. 

Ele tinha algo, então, 
da estagnação de um louco. 
Algo da estagnação 
do hospital, da penitenciária, dos asilos, 
da vida suja e abafada 
(de roupa suja e abafada) 
por onde se veio arrastando. 

Algo da estagnação 
dos palácios cariados, 
comidos 
de mofo e erva-de-passarinho. 
Algo da estagnação 
das árvores obesas 
pingando os mil açúcares 
das salas de jantar pernambucanas, 
por onde se veio arrastando. 

(É nelas, 
mas de costas para o rio, 
que "as grandes famílias espirituais" da cidade 
chocam os ovos gordos 
de sua prosa. 
Na paz redonda das cozinhas, 
ei-las a revolver viciosamente 
seus caldeirões 
de preguiça viscosa). 

Seria a água daquele rio 
fruta de alguma árvore? 
Por que parecia aquela 
uma água madura? 
Por que sobre ela, sempre, 
como que iam pousar moscas? 

Aquele rio 
saltou alegre em alguma parte? 
Foi canção ou fonte 
Em alguma parte? 
Por que então seus olhos 
vinham pintados de azul 
nos mapas? 
---------------------------
II. Paisagem do Capibaribe 
---
Entre a paisagem 
o rio fluía 
como uma espada de líquido espesso. 
Como um cão 
humilde e espesso. 

Entre a paisagem 
(fluía) 
de homens plantados na lama; 
de casas de lama 
plantadas em ilhas 
coaguladas na lama; 
paisagem de anfíbios 
de lama e lama. 

Como o rio 
aqueles homens 
são como cães sem plumas 
(um cão sem plumas 
é mais 
que um cão saqueado; 
é mais 
que um cão assassinado. 

Um cão sem plumas 
é quando uma árvore sem voz. 
É quando de um pássaro 
suas raízes no ar. 
É quando a alguma coisa 
roem tão fundo 
até o que não tem). 

O rio sabia 
daqueles homens sem plumas. 
Sabia 
de suas barbas expostas, 
de seu doloroso cabelo 
de camarão e estopa. 

Ele sabia também 
dos grandes galpões da beira dos cais 
(onde tudo 
é uma imensa porta 
sem portas) 
escancarados 
aos horizontes que cheiram a gasolina. 

E sabia 
da magra cidade de rolha, 
onde homens ossudos, 
onde pontes, sobrados ossudos 
(vão todos 
vestidos de brim) 
secam 
até sua mais funda caliça. 

Mas ele conhecia melhor 
os homens sem pluma. 
Estes 
secam 
ainda mais além 
de sua caliça extrema; 
ainda mais além 
de sua palha; 
mais além 
da palha de seu chapéu; 
mais além 
até 
da camisa que não têm; 
muito mais além do nome 
mesmo escrito na folha 
do papel mais seco. 

Porque é na água do rio 
que eles se perdem 
(lentamente 
e sem dente). 
Ali se perdem 
(como uma agulha não se perde). 
Ali se perdem 
(como um relógio não se quebra). 

Ali se perdem 
como um espelho não se quebra. 
Ali se perdem 
como se perde a água derramada: 
sem o dente seco 
com que de repente 
num homem se rompe 
o fio de homem. 

Na água do rio, 
lentamente, 
se vão perdendo 
em lama; numa lama 
que pouco a pouco 
também não pode falar: 
que pouco a pouco 
ganha os gestos defuntos 
da lama; 
o sangue de goma, 
o olho paralítico 
da lama. 

Na paisagem do rio 
difícil é saber 
onde começa o rio; 
onde a lama 
começa do rio; 
onde a terra 
começa da lama; 
onde o homem, 
onde a pele 
começa da lama; 
onde começa o homem 
naquele homem. 

Difícil é saber 
se aquele homem 
já não está 
mais aquém do homem; 
mais aquém do homem 
ao menos capaz de roer 
os ossos do ofício; 
capaz de sangrar 
na praça; 
capaz de gritar 
se a moenda lhe mastiga o braço; 
capaz 
de ter a vida mastigada 
e não apenas 
dissolvida 
(naquela água macia 
que amolece seus ossos 
como amoleceu as pedras). 
-----------------------
III. Fábula do Capibaribe 
---
A cidade é fecundada 
por aquela espada 
que se derrama, 
por aquela 
úmida gengiva de espada. 

No extremo do rio 
o mar se estendia, 
como camisa ou lençol, 
sobre seus esqueletos 
de areia lavada. 

(Como o rio era um cachorro, 
o mar podia ser uma bandeira 
azul e branca 
desdobrada 
no extremo do curso 
- ou do mastro - do rio. 

Uma bandeira 
que tivesse dentes: 
que o mar está sempre 
com seus dentes e seu sabão 
roendo suas praias. 

Uma bandeira 
que tivesse dentes: 
como um poeta puro 
polindo esqueletos, 
como um roedor puro, 
um polícia puro 
elaborando esqueletos, 
o mar, 
com afã, 
está sempre outra vez lavando 
seu puro esqueleto de areia. 

O mar e seu incenso, 
o mar e seus ácidos, 
o mar e a boca de seus ácidos, 
o mar e seu estômago 
que come e se come, 
o mar e sua carne 
vidrada, de estátua, 
seu silêncio, alcançado 
à custa de sempre dizer 
a mesma coisa, 
o mar e seu tão puro 
professor de geometria). 

O rio teme aquele mar 
como um cachorro 
teme uma porta entretanto aberta, 
como um mendigo, 
a igreja aparentemente aberta. 

Primeiro, 
o mar devolve o rio. 
Fecha o mar ao rio 
seus brancos lençóis. 
O mar se fecha 
a tudo o que no rio 
são flores de terra, 
imagem de cão ou mendigo. 

Depois, 
o mar invade o rio. 
Quer 
o mar 
destruir no rio 
suas flores de terra inchada, 
tudo o que nessa terra 
pode crescer e explodir, 
como uma ilha, 
uma fruta. 

Mas antes de ir ao mar 
o rio se detém 
em mangues de água parada. 
Junta-se o rio 
a outros rios 
numa laguna, em pântanos 
onde, fria, a vida ferve. 

Junta-se o rio 
a outros rios. 
Juntos, 
todos os rios 
preparam sua luta 
de água parada, 
sua luta 
de fruta parada. 

(Como o rio era um cachorro, 
como o mar era uma bandeira, 
aqueles mangues 
são uma enorme fruta: 

A mesma máquina 
paciente e útil 
de uma fruta; 
a mesma força 
invencível e anônima 
de uma fruta 
- trabalhando ainda seu açúcar 
depois de cortada -. 

Como gota a gota 
até o açúcar, 
gota a gota 
até as coroas de terra; 
como gota a gota 
até uma nova planta, 
gota a gota 
até as ilhas súbitas 
aflorando alegres). 
----------------------
IV. Discurso do Capibaribe 
---
Aquele rio 
está na memória 
como um cão vivo 
dentro de uma sala. 
Como um cão vivo 
dentro de um bolso. 
Como um cão vivo 
debaixo dos lençóis, 
debaixo da camisa, 
da pele. 

Um cão, porque vive, 
é agudo. 
O que vive 
não entorpece. 
O que vive fere. 
O homem, 
porque vive, 
choca com o que vive. 
Viver 
é ir entre o que vive. 

O que vive 
incomoda de vida 
o silêncio, o sono, o corpo 
que sonhou cortar-se 
roupas de nuvens. 
O que vive choca, 
tem dentes, arestas, é espesso. 
O que vive é espesso 
como um cão, um homem, 
como aquele rio. 

Como todo o real 
é espesso. 
Aquele rio 
é espesso e real. 
Como uma maçã 
é espessa. 
Como um cachorro 
é mais espesso do que uma maçã. 
Como é mais espesso 
o sangue do cachorro 
do que o próprio cachorro. 
Como é mais espesso 
um homem 
do que o sangue de um cachorro. 
Como é muito mais espesso 
o sangue de um homem 
do que o sonho de um homem. 

Espesso 
como uma maçã é espessa. 
Como uma maçã 
é muito mais espessa 
se um homem a come 
do que se um homem a vê. 
Como é ainda mais espessa 
se a fome a come. 
Como é ainda muito mais espessa 
se não a pode comer 
a fome que a vê. 

Aquele rio 
é espesso 
como o real mais espesso. 
Espesso 
por sua paisagem espessa, 
onde a fome 
estende seus batalhões de secretas 
e íntimas formigas. 

E espesso 
por sua fábula espessa; 
pelo fluir 
de suas geleias de terra; 
ao parir 
suas ilhas negras de terra. 

Porque é muito mais espessa 
a vida que se desdobra 
em mais vida, 
como uma fruta 
é mais espessa 
que sua flor; 
como a árvore 
é mais espessa 
que sua semente; 
como a flor 
é mais espessa 
que sua árvore, 
etc. etc. 

Espesso, 
porque é mais espessa 
a vida que se luta 
cada dia, 
o dia que se adquire 
cada dia 
(como uma ave 
que vai cada segundo 
conquistando seu voo).

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

DIZ-ME A VERDADE ACERCA DO AMOR – W. H. Auden

Tradução de Roberto Susuki

Há quem diga que o amor é um rapazinho,
e quem diga que ele é um pássaro;
há quem diga que faz o mundo girar,
e quem diga que é um absurdo,
e quando perguntei ao meu vizinho,
que tinha ar de quem sabia,
a sua mulher zangou-se mesmo muito,
e disse que isso não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas, 

ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
ou tem um cheiro agradável?
É áspero ao tato como uma sebe espinhosa
ou é fofo como um edredom de penas? 
É cortante ou muito polido nos seus bordos? 
Ah, diz-me a verdade acerca do amor. 

Os nossos livros de história fazem-lhe referências 
em curtas notas críticas, 
é um assunto de conversa muito vulgar 
nos transatlânticos; 
descobri que o assunto era mencionado 
em relatos de suicidas, 
e até o vi escrevinhado 
nas costas dos guias ferroviários. 

Uiva como um cão de Alsácia esfomeado, 
ou ribomba como uma banda militar? 
Poderá alguém fazer uma imitação perfeita 
com um serrote ou um Steinway de concerto? 
O seu canto é estrondoso nas festas? 
Ou gosta apenas de música clássica? 
Interrompe-se quando queremos estar sossegados? 
Ah! diz-me a verdade acerca do amor. 

Espreitei a casa de verão, 
e não estava lá, 
Tentei o Tâmisa em Maidenhead 
e o ar tonificante de Brighton, 
não sei o que cantava o melro, 
ou o que a tulipa dizia; 
mas não estava na capoeira, 
nem debaixo da cama. 

Fará esgares extraordinários? 
Enjoa sempre num balouçar? 
Passa todo o seu tempo nas corridas? 
Ou a tocar violino em pedaços de cordel? 
Tem ideias próprias sobre o dinheiro? 
Pensa ser o patriotismo suficiente? 
As suas histórias são vulgares mas divertidas? 
Ah, diz-me a verdade acerca do amor. 

Chega sem avisar no instante 
em que meto o dedo no nariz? 
Virá bater-me à porta de manhã, 
ou pisar-me os pés no ônibus? 
Virá como uma súbita mudança de tempo? 
O seu acolhimento será rude ou delicado? 
Virá alterar toda a minha vida? 
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

VAGANDO - William Wordsworth

Tradução de Paulo Vizioli


Eu vagava qual nuvem flutuando
por sobre o vale e o monte em solidão,
quando vi de repente uma hoste, um bando
de narcisos dourados pelo chão,
junto ao lago, debaixo da ramagem,
a adejar e a dançar à doce aragem.

Em linha como a que de noite brilha
e pisca na Via Láctea, se estendia
sua contínua e interminável trilha
nas margens ao redor de uma baía:
dez mil eu vi, em dança desvairada,
balançando as cabeças sem parada.

A água também dançava; não obstante,
eles a superavam na alegria ...
Um poeta só podia estar radiante
naquela tão jucunda companhia.
Olhei e olhei ... mas sem imaginar
que tesouro ganhara em tal lugar:

Porque quando, vazio e cismador,
repouso no divã, eis que amiúde
fulgem eles naquele olho interior
que a solidão é beatitude;
e então minha alma se abre em mil sorrisos,
e se põe a dançar com os narcisos.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

FIA – Jussara Salazar

Remanso de rio esquecido
vens tecer tuas pedras?

Venho fiar minhas águas
Na semeadura da relva

Remanso de rio esquecido
Vens tecer tua brisa?

Venho fiar palavras
No dorso escuro da terra

Remanso do rio esquecido
Vens tecer tuas guerras?

Contra quem hei de guerrear?

Vim pra parir meus filhos
Fiar meus frutos perdidos

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

AMANHECIMENTO - Elisa Lucinda

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

AMOR PACÍFICO E FECUNDO – Rabindranath Tagore

Tradução de Manuel Simões


Não quero amor 
que não saiba dominar-se, 
desse, como vinho espumante, 
que parte o copo e se entorna, 
perdido num instante. 

Dá-me esse amor fresco e puro 
como a tua chuva, 
que abençoa a terra sequiosa, 
e enche as talhas do lar. 
Amor que penetre até ao centro da vida, 
e dali se estenda como seiva invisível, 
até aos ramos da árvore da existência, 
e faça nascer 
as flores e os frutos. 
Dá-me esse amor 
que conserva tranquilo o coração, 
na plenitude da paz! 

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS – Manoel de Barros


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.