quinta-feira, 27 de julho de 2017

TOMAR CATUABA COM VOCÊ – Regina Azevedo

Tomar catuaba com você
é ainda mais tesudo
que ir a Hellcife, Natal, Fortaleza
ou ficar sequelado de 51 na Lapa

em parte por dançar forró com um mendigo suado
em parte por você ser o boy com o quadril mais eficiente do mundo
em parte por causa do meu amor por você
em parte por causa do seu amor por maconha
em parte por causa dos ipês albinos na estrada de Brasília

é difícil de acreditar quando estou com você
na existência de algo tão inerte
tão inodoro e ao mesmo tempo tão putrefato
quanto o atual Presidente da República

Nós andamos entre as fantasias da nossa canção
e de repente você se pergunta por que caralhos
alguém construiria um edifício atrapalhando o carnaval
Eu imagino o desmoronamento de um arranha-céu
e eu prefiro assistir ao acontecimento
de um desastre natural refletido nos seus olhos
Eu prefiro ver o seu sorriso diante de um maremoto
diante da falência da agroindústria ou das imobiliárias
a ver qualquer quadro pós-impressionista
exceto talvez Lautrec porque quando eu danço com você
eu não preciso fechar os olhos pra dançar com a melhor pessoa do mundo

Tomar catuaba com você
é ainda mais tesudo
que te assistir tragando um míssil
que ouvir você falando da potência das flores
que reposicionar a cama no lugar
que tropeçar e te encontrar
repetindo a palavra calma
enquanto o vento nos dá um sacode
e você diz que sente
a primavera fazendo cócegas
em nossas barrigas

EDUCAÇÃO DO CACIQUE – Pablo Neruda (*)

Lautero era uma flecha delgada
elástico e azul foi o nosso pai.
Foi sua primeira idade só silêncio.
Sua adolescência foi  domínio.
Sua juventude foi um vento dirigido.
Preparou-se como uma longa lança.
Acostumou os pés nas  cachoeiras.
Educou a cabeça nos espinhos.
Executou as provas do guanaco.
Viveu pelos covis da neve.
Espreitou as águia comendo.
Arranhou os segredos no penhasco.
Entreteve as pétalas do fogo.
Amamentou-se da primavera fria.
Queimou-se nas gargantas infernais.
Foi caçador entre as aves cruéis.
Tingiram-se de vitória as suas mãos.
Leu as agressões da noite.
Amparou o desmoronamento do enxofre.
Se fez velocidade, luz repentina.
Tomou as vagarezas do outono.
Trabalhou nas guaridas invisíveis.
Dormiu sobre os lençóis da nevasca.
Igualou-se à conduta das flechas.
Bebeu o sangue agreste dos caminhos.
Arrebatou o tesouro das ondas.
Se fez ameaça  como um deus sombrio
Comeu  em cada cozinha de seu povo.
Aprendeu o alfabeto do relâmpago.
Farejou as cinzas espalhadas.
Envolveu o coração de peles negras.
Decifrou o frio espiral do fumo.
Construiu-se de fibra, taciturno.
Azeitou-se como a alma da azeitona.
Fez-se cristal de transparência dura.
Estudou para vento furacão.
Combateu-se até apagar o sangue.

E só então foi digno de seu povo.

 (*) A Educação do Cacique poema  copiado do livro “Canto Geral”, do poeta Pablo Neruda (1904-1973),  tradução de Paulo Mendes Campos.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

REMINISCÊNCIAS DO ALÉM - Domingos Magarinos



Domingos Magarinos Membro da tradicional família Souza Leão, passou a juventude no Recife, antes de se mudar para o Rio de Janeiro.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

FAGULHAS - Cacique Juvenal Payayá

O suor sentido no limo da rocha azul
Apesar do bronze que a prolonga;
A estação fria dorme e desperta
Com o vespeiro da estação da luz;

O guerreiro não cansa a pelo sem a sela
E mais ágil se indomável é o ginete;
Na caverna o rio domina as trevas,
Nos palácios a trovoada silencia;

Não há fragmento sem saudades,
É o corpo o fragmento da mente;
Recortado, fragmentos da rocha azul
Acomodam-se por instante na vidraça;

É a estação da luz que fragmenta as vidraças,
Ressurge nas pressões contra  palácios
Cavalgando a longe no impulso do trovão.
Solitário o rio vence as trevas das cavernas;

Kurumin, livre fragmentos de vidraça
Rompendo cavernas, úmidas selvas,
Fagulha saudosa de vingança doce
Nos pés suados nos palácios de verão.

terça-feira, 11 de julho de 2017

ANTES DO COMEÇO E DEPOIS DO FIM – Wancir Sales

O que vem antes do começo?
A esperança de que tudo será perfeito,
Um dia azulado,
Uma noite estrelada,
Um amor eterno,
Uma vida feliz
Onde
Cada passo é uma dança,
A cada música um canto,
A cada sonho uma realidade.
E o que vem depois do começo?
Quando você abre os olhos para a realidade
E vê que aqueles seus sonhos se transformaram em pesadelos,
Até o dia azulado não é mais o mesmo,
Que desgosto viver depois do começo que é este fim
Em meio a tanto sofrimento.
Só há lamentos, dor muita dor
E depois do fim? O que vem?
Entre dores e temores
Vem a esperança de um novo começo
Para que haja
Novos sonhos, novas danças,
Novos dias e noites
E quando houver um novo fim
Que venha com menos dores e temores
Menos sofrimentos e lamentos
E mais amadurecida e vivida,
Com a cabeça erguida
Já saberei:
Sempre há um novo começo
Para que haja novo fim.

PRONTO QUE TE CONTO - Camila Pereira de Paula



pronto que te conto
um conto
em que um tonto
um tanto quanto santo
cantando
me encantou.
e contando
não conto como me sinto
se fico
canto
ou minto
somente pra te encantar

ATA-ME - Aninha Torres

Vem meu amor
não demores mais
não precisas fugir
não precisas mentir
não precisas esconder-se
não precisas ater-se
eu já te vi
tu já me vistes
já te desnudei
já me desnudastes
já te guiei
já me guiastes
já te sequei
já me secastes
já te mapeei
já me mapeastes
que mais falta?
que mais queres?
Vem meu bem
ata-me a ti
ata-te a mim
e sigamos bem juntinhas
enfim.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

DOIS POEMAS DO POETA CEARENSE QUINTINO CUNHA (1875/1943)



SACRIFÍCIO – Quintino Cunha (*)

Do alto andar de um arranha-céu fraqueja
E rui um andaime que se despedaça
Todo infortúnio por maior que ele seja
Não será pior que essa desgraça

E vê-se então: Oh, santa maravilha!
Dois operários presos deste modo:
Ambos seguros por um cabo de manilha
Fraco, ameaçando rebentar-se todo.

Um pelo menos salvar-se-ia à vinda
De um socorro qualquer nesse transporte
Mas o heroísmo não esqueceu ainda
Quem com amor e coragem enfrenta a morte.

E assim nesse dilema derradeiro
Onde só um podia salvar-se extraordinário...
João – pergunta, resoluto o companheiro
- Qual de nós dois será mais necessário?

Eu tenho quatro filhos é o que João murmura.
- Oh, camarada, então eu te consolo!
E deixou-se cair da imensa altura
Na aspereza sepulcral do solo.
........................

SPES ÚNICA – Quintino Cunha

- Morto, dentro da fria sepultura,
            sem te poder falar?
E tu, que me amas, boa criatura,
            indo me visitar...

Banhada de suspiros, de soluços,
            desmaiada, talvez ...
Muita vez reclinada, até de bruços,
            na altura dos meus pés
...

Pedindo a Deus o meu viver eterno
             junto das glórias suas;
que me livre das penas do inferno,
             
e a chorar continuas...

Lembrando nossa vida a todo instante
repassada de dor,
a lembrar-te que fui o teu amante,
- o teu único amor,

Mal, pensando na horrífera caveira
em que me transformei,
exausto de fadiga, de canseira,
imaginar não sei...

Para evitar essa hora amargurada,
esse quadro de dor, tão verdadeiro,
Deus há-de ser servido, minha amada,
que tu morras primeiro!..

(*) José Quintino da Cunha foi um advogado, escritor e poeta cearense. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Ceará em 1909, onde começou a exercer a profissão de advogado criminalista. Foi deputado estadual entre 1913 e 1914.

domingo, 2 de julho de 2017

DOIS SONETOS DE ANTÔNIO MENDES MARTINS



(Poeta pernambucano do Recife dos fins do Século XIX e início do Século XX, praticamente desconhecido do público leitor)


UM CORAÇÃO

Conheço um coração que vive do passado
Não esquece um momento o que era antigamente,
E de um tédio imortal, num cárcere fechado,
Não sabe se está vivo ou morto no presente.

E vai seguindo assim, sozinho e indiferente,
A tudo em que repousa o seu olhar magoado...
E, olhando para trás, não vê, na sua frente,
Do futuro distante o abismo escancarado.

E para esse futuro é que ele vai, no entanto...
O passado finou-se e envolve a escuridade.
Que é de tudo que morre o verdadeiro manto...

E o triste, mundo em fora, aos trancos, erradio,
Caminha sem saber, talvez, que esta saudade
É um círio iluminando um féretro vazio.
.............................................
AMOR PASSADO

Por essa mesma estrada em que nós dois, outrora,
Cheios de mútuo afeto, andamos tão sozinhos,
Por essa mesma estrada, andas com outro, agora,
Ouvindo, no arvoredo, a música dos ninhos.

É o mesmo firmamento, e os mesmos passarinhos
Saúdam, gorjeando, o alvorecer da aurora...
Brilha do mesmo modo a areia dos caminhos
Que a mesma primavera exuberante enflora.

Do lago azul do céu na superfície, a lua
Serena e majestosa, ainda hoje flutua
Como um barco dourado e que não teme escolhos...

Tudo está como estava... Unicamente, ingrata.
Outro homem, que não eu, agora se retrata
No pálido cristal do espelho dos teus olhos.

sábado, 1 de julho de 2017

A CASA AZUL – Talis Andrade

Eu poderia ser feliz
em uma casa azul
à beira de um lago

Uma casa azul
ladeada por árvores
uma casa azul
com varandas
nos lados

Uma casa azul
com sinos de vento
e o canto dos pássaros
eu poderia ser feliz

Se existisse uma casa azul
de tão bonita a casa
talvez você consentisse
em morar comigo

À ESPERA DOS BÁRBAROS – Konstantino Kaváfis

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.