quinta-feira, 31 de agosto de 2017

VOZES – Prisca Agustoni

Tempo e espaço
não me limitam.
A procura
me avizinha ao mundo.

A moça espera
quem nunca partiu,
depois abraça
o que nunca chegou.

Minha palavra
é explosão de argila.

DESENCANTO – Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

EU LAVO A CAMISA – Anna Swir

Tradução de Pedro Gonzaga

Pela última vez lavo a camisa
do meu pai morto.
A camisa cheira a suor. Lembro
desse suor de minha infância,
por tantos anos
lavei suas camisas e roupas de baixo,
sequei-as
junto ao fogão à lenha na garagem,
ele que as vestia sem passar.
Entre todos os corpos do mundo,
animais, humanos,
apenas um exsudava aquele suor.
Inalei-o
pela última vez. Ao lavar esta camisa
destruí-o
para sempre.
Agora
de meu pai restam apenas os quadros
que cheiram a óleo.

DERROTA – Adam Zagajewski

Tradução de Aleksandar Jovanović

De fato conseguimos viver nas derrotas.
As amizades aprofundam-se o amor esperto ergue a cabeça.
Até as coisas se tornam limpas.
As andorinhas brincam no ar instaladas sobre o abismo.
As folhas dos álamos tremulam.
As aparições escuras do inimigo projetam-se
contra a base brilhante da esperança.
A coragem cresce.
Eles, dizemos deles, nós, de nós, tu, de mim.
O chá amargo agrada como uma profecia bíblica.
Tomara que a vitória não nos surpreenda.

O LIVRO ESCURO (I) - Mar Becker

isadora duncan aparece em meu espelho
no lugar de mim
então me olha
e mostra
a língua. demoro a perceber que é uma língua
em forma de ponteiro de relógio
(o que falta em meu próprio relógio, na parede da cama)
*
vai até a cozinha
eu sigo
o gás atravessa a mangueira discreta
e pacientemente, como um segredo entre gerações.
lembro que esse é o gás com que sylvia plath se suicidou
e que sylvia plath é a poeta que cita a echarpe
de isadora duncan
num poema que se chama
"40 graus de febre"
*
o silvo: a válvula-vulva da panela de pressão
girando
*
o ponteiro nenhum do relógio, girando
o corpo e o sangue
a roda do conversível

sábado, 19 de agosto de 2017

HOMEM PEQUENINO-Alfonsina Storni

Tradução de Héctor Zanetti
Homem pequenino, homem pequenino,
solta teu canário que quer voar…
Eu sou teu canário, homem pequenino,
deixa-me saltar.

Estive na tua gaiola, homem pequenino,
homem pequenino que gaiola me dás.
Digo pequenino porque não me entendes,
nem me entenderás.

Também não te entendo, mas enquanto isso
abre-me a gaiola que quero escapar;
Homem pequenino, te amei meia hora,
não me peças mais.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

TODO TOCAR É UMA CANÇÃO - Carla Carbatti

enquanto acordo os pássaros
a mãe tece a mortalha do anoitecer
agora estamos fora
na linha curvilínea de uma folha que chora

que farei com minhas mãos
depois de tocarem aquilo que não se toca?

todo tocar é uma canção
- murmulha a mãe entre seus galhos e rascunhos
é isso que se perde, minha filha

e sua voz vibra as águas do meu punho

terça-feira, 15 de agosto de 2017

DA PAZ - Marcelino Freire (Pernambucano natural da cidade de Sertânia)


Eu não sou da paz.
Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça.
Uma desgraça.
Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para aonde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquela atriz? No trio elétrico, aquele ator?
Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. Vou não.
Não vou.
A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.
A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue.
Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. Proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou.
Não vou.
Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein?
Hein?
Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor.
Dor.
A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava, pode ter certeza. Todo mundo. Mas a paz é que é culpada. Sabe?
A paz é que não deixa.

sábado, 5 de agosto de 2017

SONETO AO ANJO - Sosígenes Costa

Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.

Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.

Só tu agora colhes azaleia
e os cintilantes cachos da azureia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.

Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.