terça-feira, 19 de setembro de 2017

O SELVAGEM – Antonio Gomes Leal

Eu não amo ninguém. Também no mundo
Ninguém por mim o peito bater sente,
Ninguém entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.

Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais calado que o esquife, a morte e as lousas,
Selvagem, solitário, inerte e mudo,
- Passividade estúpida das Cousas.

Fechei, de há muito, o livro do Passado
Sinto em mim o desprezo do Futuro,
E vivo só comigo, amortalhado
N'um egoísmo bárbaro e escuro.

Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos cruéis indiferentes,
Meu peito é um covil, onde, às escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.

E não vejo ninguém. Saio somente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguém me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua...

BALADA DE SEMPRE – Fernando Namora

Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.

Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer...

Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas...

Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos...
- A tua alma não morre
aos medos e às sombras!-

Mas...,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada...

ELOGIO DA DISTÂNCIA – Paul Celan

 Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
 
Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

A MACHADO DE ASSIS – Ruben Dário

Traduzido por Anderson Braga Horta

Doce ancião que vi, em seu Brasil repleno
de fogo e vida e amor, todo graça e eutimia.
Moreno que da Índia teve a aristocracia;
aspecto mandarino, língua de sábio heleno.
Aceita esta lembrança de quem ouviu uma tarde
em teu divino Rio tua palavra nobre,
dando ao orgulho todos os farrapos em que arde,
e à inveja ruim o que apenas a cobre.

AMOR DE TARDE – Mario Benedetti

Tradução Julio Luiz Gehlen

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.