terça-feira, 29 de maio de 2018

ODE A JOVEM LUZ - Eliseo Diego

Tradução de Alai Garcia Diniz

Em meu país a luz
é muito mais que o tempo, demora-se
com estranha delícia nos contornos
militares de tudo, nas relíquias
enxutas do dilúvio.
A luz
em meu país resiste à memória
como o ouro ao suor da cobiça,
perdura entre si mesma, nos ignora
desde seu alheio ser, sua transparência.

Quem corteje a luz com fitas e tambores
inclinando-se aqui e ali conforme a astúcia
de uma sensualidade arcaica, incalculável,
perde seu tempo, argúi com as ondas
enquanto a luz, ensimesmada, dorme.

Pois em meu país a luz não vê
as modestas vitórias do sentido
nem os finos desastres da sorte,
mas se entretém com folhas, passarinhos,
caracóis, clarões, intensos verdes.

E é que cega a luz em meu país deslumbra
seu próprio coração inviolável
sem saber de ganhos ou de perdas.
Pura como o sal, intacta, erguida,
a casta, demente luz desfolha o tempo.

TRÉGUA FECUNDA - Legna Rodríguez Iglesias

Tradução de Mariana Ruggieri.

Sobre o túmulo do meu grandfather
tem flores nacionais
esse homem lutou em uma guerra
há mais de sessenta anos
uma guerra por liberdade
libertar-se do que prende
é a luta comum.
Sabia ler e escrever
com certa facilidade
mas não melhor que eu
foi uma tristeza
que quem fez a autópsia
deixou o marcapassos
no fundo do peito
agora sob as flores
tem um marcapassos me vigiando
O que esperava meu grandfather de mim?
Que eu semeasse uma flor nacional
no fundo do meu coração fecundo?
Que descanse em paz grandfather
já escrevi coisas grandfather
e essa é a melhor revolução
que farei.

sábado, 26 de maio de 2018

VIGÍLIA – Márcia Luz

Minha mãe tamborilava os dedos
enquanto esperava meu pai.
O cuco cantava as horas
E papai...
nada.

Minha mãe chorava
enquanto esperava meu pai.
O cuco contava as horas
E papai...
nada.

Minha mãe fumava
enquanto esperava meu pai.
O cuco calava as horas
E papai...
nada.

Hoje mamãe tamborila os dedos, chora, fuma.
O cuco se cansou
É apenas um detalhe na parede
E meu pai
não vem mais.

CANÇÃO DO AMOR LIVRE – Jacinta Passos

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.

TEUS CABELOS – Gilberto Amado

Quero louvar o zelo desenvolto
com que arranjas o próprio desmazelo,
é sempre para mim cabelo solto
por melhor penteado o teu cabelo.
Em doce névoa de volúpia envolto
gozo contente o descuidado zelo
com que logras fazer de um mar revolto
de ondas lisas o clássico modelo.
Mergulham minhas mãos na noite funda
da perturbante tempestade em ordem
que o teu rosto claríssimo circunda.
E encontram minhas mãos onde mergulham
um ninho de relâmpagos que mordem,
novelos de serpentes que fagulham.

FORMA – Dante Milano

Envolvente sentimento,
Abraço que se insinua
E entre amoroso e violento
Quer que a mulher fique nua.

Tirado o vestido aéreo,
O eflúvio sexual que a inunda
Revela a região profunda
Da vida, do seu mistério.

Mulher de orlas misteriosas,
Água de desenhos sábios,
Contorno de olhos e lábios
Feitos de linhas sinuosas.

O ventre em remanso de onda
Transborda, em círculos cheios,
Pelas ancas se arredonda
E redemoinha nos seios.

Ó pedra atirada n´água,
Que o meigo umbigo magoa.
Água tocada de mágoa,
Beijo com força, que doa.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

RASGO - Monica Marques

Trago o tempo entre os dentes
É preciso morder a existência pelas bordas
para que não escape

É necessário rasgar a carne
para o que está dentro
possa vir à tona

Rasgar entre a luz e a fumaça
Mexer as imagens com os dedos
Acordar entre a loucura e poesia
Sonhar até ficar vazia

Não há mais delicadeza
Apenas pólvora queimando sem rima
Poesia frita em óleo sujo
Translucidez

Ser é tempo iluminado
Que se desdobra em sua espessura
E vira a esquina

UM MARINHEIRO E O RECIFE – Pedro Américo de Farias

Indiferente
à verdade e à fantasia

ao traçado do primeiro
e do último arquiteto

à lógica que não seja
a do olho e do tato

ao amor louco dos bêbados ansiosos
e à auto-flagelação dos ressacados

ao deslumbramento do turista aprendiz de hoje
e à lamentosa tortura dos passadistas

à complacência dos podres poderes
e à penitência dos pobres beatos

um marinheiro
pinta para si mesmo
a rua que lhe convém

diminui distâncias e aproxima o porto
desmancha a topografia
recompõe a cidade
sem perder de vista
o mar e a linha do horizonte

POCILGA – Rafael Rocha

Do livro “Ômega & Alfa”

Na curva dos caminhos dos porcos
o tempo estacionou taciturno
apagou a luz da rua
trouxe o vento frio
e pintou o horizonte de nada.

Homens gritaram crueldades
o dia fez-se vagabundo
e os poderosos filhos das putas:
sargentos, coronéis, generais,
deputados, senadores, ministros
abriram os cadafalsos
e despejaram neles as línguas dos vivos.

A sirene do calabouço tocou ao longe
e o chicote do feitor vibrou na escuridão.
Na curva dos caminhos dos porcos
os proprietários das pocilgas da pátria
levaram repasto de merda para o povo.

AVE APRENDIZ - Susanna Busato

Escondidas nas pernas
minhas perdas:
suas penas
de ave aprendiz.
Voam baixo
sob os últimos raios
do nosso eterno
olhar cicatriz.
Voam rentes agora e sempre
as penas à pele a sentir
e como presas se rendem
e entre as pernas se perdem
e cantam um não existir.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

SONETO DA PALAVRA NUA - Carla Nobre

Quero para minha poesia
Todas as palavras nojentas
As obscuras, as ambíguas
Uma linguagem piolhenta

Não me envergonho das minhas escolhas
Minha palavra é minha pepita
Catarro, mentira, dor, sangue
Suvaco, urubus, bruxaria, bauxita

Todas as palavras são bem vindas
E com elas as penas, a moela, as tripas
E todos os seus sentimentos e suas histórias

Das mais tristes às mais lindas
Fico com o verbo parir
E toda a sua memória

ESP-HERANÇA – Ádyla Maciel

O que nos acende e o que nos apaga
São os nossos desejos e ideologias
Ninguém está preparado pra nascer

Ninguém conhece o real segredo
Do mistério indecifrável de nossa existência.
Existe uma lei natural e inatingível

Mas se nesse momento você tiver audição
Pare e ouça o assovio do vento
É o cosmo paquerando sua vibração

Pega aquela concha antiga
Pega aquela concha e põe perto do ouvido
E Escuta o barulho do mar

O barulho do mar não é um barulho
É um código, um dialeto.
Como as cordas vocais dos elefantes

Comunique-se com o sol, com o vento
Dance com as árvores
Seja o que você quiser !

E quando sua carne apodrecer e desaparecer
Feito um gambá atropelado na estrada
Entregue sua caixinha de segredos para a humanidade

Lições, um punhado de amor, um legado de poesia e paz
Quando morreres não se esqueça de ser eterno
Eternize suas ideias influencie gerações

Como Drummond e Dumont voe em sua própria criação
Comunique-se com as ondas,
porque até a morte tem algo a nos dizer.