segunda-feira, 27 de agosto de 2018

SINALIZAÇÃO À VIDA – Rafael Rocha

Sinalizo por aqui
o nascer de uma rosa
sangrenta
com nomes
de mulheres
e de homens
fazendo de meu cérebro
oráculo da vida.

De algum modo
tudo é sangue.
Então venha a nós
o reino da rosa
vermelha
coroada.
Será minha dádiva
à bandeira
de guerra
do meu povo.

A MANHÃ - Svetlana Makarovič

Caminhas cuidadosamente entre os fragmentos do sonho.
As estrelas, grandes, pálidas e doces,
desvanecem-se no úmido amanhecer.

Umas mãos pálidas desembrulham a noite.
Timidamente sorves prata
da copa da madrugada.

Os rostos cinzentos da noite cinza,
rostos cegos encaram a cor cinza
e morrem
apoiados no teu ombro.

Caminha com cuidado.
Exalam algo amargo
as ervas da manhã.

HERANÇA PATERNA – Sônia Barros

Não nasci sem pai:
ele esperou até que eu nascesse.

Depois,
ao constatar o sexo frágil
de sua quarta frágil-filha-mulher,
ele, o homem forte,
se foi. 

Como herança,
deixou-me esta aptidão 
para voos interrompidos:

                                eterno fugir 
de onde nunca estivemos.

MATERNAL - Reynaldo Jardim

Ela se deita,
Diz que não se importa
E deixa a porta
Escancarada e nua
Ela projeta
Uma sombra torta,
Iluminada pela luz da rua.
A lua bate e ela
se comporta
Como se a lua fosse
Seu cachorro
que amestrado
Lhe beijasse a boca,
que sensitivo
Lhe aplacasse o choro.
E esse quarto
vira uma loucura
de bocas,de cachorro
de ternuras
de luas espalhadas
Água em chamas.
No incêndio dourado
de seus pêlos
queimam-se desvarios
e desvelos.
O mel de leite
Brota em suas mamas.

AMOR DE PERDIÇÃO - Neide Archanjo

Era um fluir de formas
essência grave e leve
era a ordenação do caos
a harmonia breve.

Era o poema
encostado no muro
qual flor vadia
que entre ramas se esquecia.

Era o poeta
lambendo a página
em que o poema
encantado se escrevia.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

CAVALOS FRENTE AO MAR - Nancy Morejón

Tradução de Antonio Miranda

Diante destes cavalos,
sob a própria luz
ou a luz alva da manhã
o tempo estanca outra vez
alheio aos rabos e as crinas
destes cavalos que cheiram tudo
em sua imobilidade terrestre.
                    E posso divisar
o ondular do tempo frente às ondas
que se reduzem e se levantam
sob a própria luz
ou esta luz alva da manhã
onde a existência nada mais é
que estes cavalos frente ao mar.

JOGO DE PALAVRAS – Madeline Mendieta



Levanta-se numa esquina de um fio
A Palavra,
desnuda seus antagônicos ossos
e os dilui em limonada quente.

Cospe um álacre sabor a doce
atormenta, apertar suas margens prenhas
ensurdece,
fecha os olhos para não titubear
seu significado.

O contexto a subordina a seus poeirentos
enfrentamentos sintagmáticos.

E se dissipa em um absurdo comentário
especula um incompreensível dilema rotineiro

A palavra espirra suas pausadas ironias
dependurada de um argola,
balança precocemente seus prefixos
e lança-se ao vazio.

FUI TE DESPINDO – Dulce Maria Loynaz

Tradução de Alai Garcia Diniz

Fui despindo você de você mesmo,
de seus "vocês" superpostos que a vida
te cingiu ...

Te arranquei a casca - inteira e dura –
que parecia fruta, que tinha
a forma da fruta.

E diante do vago assombro de seus olhos
surgiu você com olhos ainda velados
de sombras e assombros ...

Surgiu você de você mesmo, da mesma
sombra fecunda - intacto e desgarrado
em alma viva ...

DURAÇÃO DA PAISAGEM – Duda Machado


Esquece a música.

Antes sustentar a tensão
a ponto de contemplá-la
dentro ainda
de sua permanência.

A partir daí
- o mundo intacto -
vai-se abrindo um espaço,
paisagem no-preenchida,
habitada somente
por uma duração
para a qual acordamos
e, na qual, às vezes,
podemos existir.

ENCONTRO – Cássia Fernandes

A vida anda tão corrida,
que o encontro marcado
com a amiga
é no supermercado
enquanto faço as compras do mês.
Ela me conta seu dia,
eu reclamo do ex.
Enquanto escolho as batatas,
ela narra os casos de amor e de família.
Discutimos os temas em alta.
Declaro que me sinto só,
enquanto ela me recomenda
a melhor marca de sabão em pó.
Falamos sobre o tempo
e sobre a vida.
          Viu como as maçãs estão bonitas?
E como vai sua prima?
E tomamos
um café
que a demonstradora da nova marca
nos oferece ali em pé.
Ela tenta me ensinar uma receita
que eu não terei tempo de fazer.
Você não esqueceu da manteiga?
Não precisa levar ovos?
Passemos no caixa
e os encontraremos logo.
Você está na minha lista.
Não me esqueço de você.

DESPEDIDA – Natália Parreiras

Um rosto,
Um apego,
Mil lembranças.

Sem traços,
Sem rastros,
Sem esperanças.

Só um esboço,
Nesse esforço,
De pele e osso,
É o que faço.

Lágrimas que não têm rumo,
Tristezas profundas que em sumo,
São sentimentos rasos.

Pele quente, peito aberto,
Toda desgraça chega perto.
Nesse meu rosto sem marcas,
Deixo cortes, passo a faca,
Num desespero discreto.

Sangue que derrama,
Que encharca a alma e minha cama,
É um destino certo,
No suicídio secreto,
De alguém que ninguém ama.

SONETO – Gomes Cardim

Quando no oceano o sol mergulha, quando
São de ouro as aves, e de chama os lagos,
Vejo envoltas de luz, em mil afagos,
As pombas que, uma a uma, vêm chegando.

E logo surgem os implumes, vagos,
Trêmulos todos, estendendo ao bando
Os biquinhos abertos, implorando
Os beijos maternais, de efeitos magos.

Mas hoje embalde vi chamar... chamar...
Um flébil, triste e pequenino par:
- Não voltara um casal, que aos prados fora.

Então lembrei-me de que tinha outrora
Um lar dileto... e que também agora
Choro os que foram para não voltar.

DEUSES E MITOS – Gastão Torres

Bilhões de auroras foram necessárias
Até que o fogo se fizesse lava,
Até que a lava se fizesse pedra,
Até que a pedra se fizesse Terra.

Bilhões de auroras foram necessárias
Até que os brutos se tornassem homens,
Até que os homens se tornassem anjos,
Até que os anjos se tornassem Deuses.

Bilhões de auroras foram necessárias
Até que os homens inventassem mitos,
Até que os mitos constituíssem fé.

Contudo apenas uma aurora basta
Para que os homens, finalmente homens,
Cancelem mitos e estraçalhem Deuses.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

A MORTE – Moya Cannon

Tradução de Luci Collin

a respiração pesada e curta -
um trabalho, vil como o nascimento.

Minha mãe, com quase noventa,
deve correr uma maratona.

Três semanas atrás,
ela fez sua última objeção incisiva;
três dias atrás, comeu um morango fatiado;
hoje ela não consegue tomar um gole -
com esponjas presas numa haste molhamos seus lábios.

Nós, sua ninhada grisalha, chegamos
em carros, de trem, de avião.
Seu quarto está cheio de celulares desativados.

E íntimo o território da morte,
como o do amor.

SEFERIS – Lawrence Durrell

Tradução de Jorge Wanderley

O tempo nos coleta como a feixes.
Ronda um dia, acena aos raros que vê
(Com um pássaro que em folhas se deixe).
Alguém como K.. ou como você.
Alvo em queda livre para a estocada.
— Que à sombra segue nossa caminhada.

Assim o escritor que sai do ar
Vê nos horizontes da dispersão
Suas palavras, um pólen perfeito.
Notas que o vento e o pássaro carregam.
Chegando a amores sem preparação.
Imagem mais madura que seus feitos.

As tuas certamente já partiram
De Delos ou de Rhodes dominantes.
Contra os deuses do sol fundando bases,
Em Nápoles, no Rio, ou nunca dantes
Sonhadas terras, difundindo Grécia:
O novo fogo grego que ofereces.

Maravilhoso é ter leito e deixado
A "achados e perdidos" dos amantes
Este sussurro ouvido por instantes.
O caminho dos grandes vens mostrar.
Que vão silentes, calmos, pois souberam:
Mesmo o morrer confina com criar.