quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

FLOR SEM TEMPO - José de Sottomayor

Na mesma rua
Na mesma cor
Passava alegre
Sorria amor
Amor nos olhos
Cabelo ao vento
Gestos de prata
De flor sem tempo
É dela o mundo
É a certeza de viver

Canta o sol
Que tens na alma
És a flor de ser feliz
Olha o mar
De tarde calma
Ouve o que ele diz

Foi como o vento
Soprou um dia
Passava alegre
Alguém a via
É nossa a vida
É a certeza de te ver

Canta o sol
Que tens na alma
És a flor de ser feliz
Olha o mar
De tarde calma
Ouve o que ele diz

DAMA - Stéphane Mallarmé


Tradução Augusto de Campos

Sem tanto ardor embora ainda flamante
A rosa que cruel ou lacerada e lassa
Se deveste do alvor que a púrpura deslaça
Para em sua carne ouvir o choro do diamante

Sim sem crises de orvalho antes em doce alento
Nem brisa o fragor do céu leve ao fracasso
Com ciúme de criar não sei bem qual espaço
No simples dia o dia real do sentimento,

Não te ocorre, talvez, que a cada ano que passa
Quando em tua fronte se alça o encanto ressurreto
Basta-me um dom qualquer natural de tua graça

Como na alcova o cintilar de um leque inquieto
A reviver do pouco de emoção que grassa
Todo o nosso nativo e monótono afeto.

POEMA DO AMANHECER – Gláucia Lemos

Que hoje o meu primeiro pensamento
seja como a luz branca da manhã
que envolve os picos
e as pontas da grama.
E faça amanhecerem as emoções.

Que nessa luz eu esteja.

Que hoje a minha intenção primeira
seja como a mão de Deus na estrada certa
ou bastão de pastor
na trilha verde.

E nessa mão me vejas.

Que hoje a minha sílaba primeira
não se abra em meu lábio,
e eu me cale.
Que nada te dirá mais que o meu beijo.

E que esse beijo eu seja.

RESGATE – João José Cochofel

Meus pés moídos na calçada,
minhas tardes envenenadas de álcoois nos cafés,
e o vazio por dentro
a encher o tédio das horas sem nome.

Tudo isto
- moeda triste
que nem chega a pagar o sol da tardinha
e a poeira de feno que pontilhou de oiro
teu corpo entre trigais.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

SOBRE UM POEMA – Herberto Helder

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

AS CASAS CONSTROEM-SE DE SOMBRAS – Sebastião Alba


As casas constroem-se de sombra
quatro sombras ao alto
longe da esfinge dos astros

Falamos das cidades
dos homens que de tão sós
as despovoam
Das casas nunca
Só as casas solitárias têm história

Giram na noite presas
à face da terra

E vede
a plasticidade das casas
ao sol
a amabilidade das casas
à porta
a incomunicabilidade das casas
sob os bombardeios.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

"ESSE PEDAÇO DE CÉU..." - Jacques Roubaud

Tradução de Inês Oseki-Dépré

Este pedaço de céu
doravante
te é consagrado

em que a face cega
da igreja
se encurva

complicada
por uma castanheira,

o sol, ali
hesita
deixa

um vermelho
ainda

antes que terra
emita

tanta ausência

que teus olhos
se exprimem

de nada

ESTE PÃO QUE VENHO ABRIR – Dylan Thomas


Tradução de Fernando Guimarães

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.

Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.

Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimen
tas.

A VLADIMIR MAIAKÓVSKI - Marina Tsvetaeva



Tradução de Haroldo de Campos

Acima das cruzes e dos topos,
Arcanjo sólido, passo firme,
Batizado a fumaça e a fogo -
Salve, pelos séculos, Vladímir!

Ele é dois: a lei e a exceção,
Ele é dois: cavalo e cavaleiro.
Toma fôlego, cospe nas mãos:
Resiste, triunfo carreteiro.

Escura altivez, soberba tosca,
Tribuno dos prodígios da praça,
Que trocou pela pedra mais fosca
O diamante lavrado e sem jaça.

Saúdo-te, trovão pedregoso!
Boceja, cumprimenta - e ligeiro
Toma o timão, rema no teu vôo
Áspero de arcanjo carreteiro.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

DOIS POEMAS COM JOHN CAGE – Adriana Lisboa


1
No lugar mais silencioso do mundo
ruge-ruge o ruído da vida
o homem é feito de sangue e neurônios
que cantam sua própria música
sem partitura ou I Ching
o silêncio não existe:
forma é vazio
vazio é forma
e tudo isso cabe no intervalo
de quatro minutos e trinta
e três
segundos.

2
Um cogumelo
é um cogumelo é um cogumelo
em Stony Point havia enorme variedade deles
e quanto mais os estudava
mais tinha dificuldade em identificá-los
um cogumelo
tão-só
um cogumelo
e no entanto
quantas estrelas ruíram
para que esse pequeno e necessário
milagre
brotasse em Stony Point.

INVICTUS – William E Henley

Tradutor: André C. S. Masini


Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.

VOLTA DE PASSEIO – Federico Garcia Lorca

Tradução de Carlos Daniel

Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.

Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.

Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.

Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

FAGULHA – Ana Cristina César


Do livro “Aos teus pés”- São Paulo: Brasiliense, 1982.

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

SE - Rudyard Kipling

Tradução de Guilherme de Almeida

Se és capaz de manter a tua calma quando 
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa; 
De crer em ti quando estão todos duvidando, 
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;

Se és capaz de pensar -- sem que a isso só te atires,
De sonhar -- sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;

Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo,
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais -- tu serás um homem, ó meu filho!

SURDINA – Cacaso (Antônio Carlos Ferreira de Brito)

Primeiro o Tenório Jr.
que sumiu na Argentina
Depois quando perigava
onze e meia da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Elis Regina!
Um arrepio gelado
um frio de cocaína!
A morte espreita calada
na dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
E agora a Clara Nunes
que morre ainda menina!
É demais! Que sina!
A melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
Que Deus proteja de perto
a minha mãe Clementina!
Lá vai a morte afinando
o coro que desafina...
Se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina...

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

TODAS AS VIDAS – Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

MEU POVO, MEU POEMA – Ferreira Gullar

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

CONSOADA – Manuel Bandeira



Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.