sexta-feira, 31 de maio de 2019

LEMBRA – Vicente de Carvalho

“Lembra”! diz-me o passado: “Eu sou a aurora 
E a primavera, o olhar que se enamora 
De quanto vê pelo caminho em flor; 
Para o teu coração cansado e triste 
É recordar-me — o único bem que existe... 
Eu sou a mocidade, eu sou o amor.” 

“Vive!” diz-me o presente. “Alma suicida, 
Louca, não peças à arvore da vida 
Mais que os amargos frutos que ela tem; 
Deixa a saudade e foge da esperança, 
Faze do pouco que teu braço alcança 
O teu mesquinho, o teu único bem.” 

“Sonha!” diz-me o futuro: “o sonho é tudo, 
Eu sobre as tuas pálpebras sacudo 
A poeira da ilusão!... sonha, e bendiz! 
Eu sou o único bem porque te engano, 
E o desgraçado coração humano 
Só com o que não possui é que é feliz.”

Eu ouço os três, e calo-me: desisto 
De quanto me prometem, porque nisto 
Todos se enganam, todos, menos eu: 
Beijo dos lábios da mulher amada, 
O único bem és tu! Nem há mais nada. 
E tu és de outro, e nunca serás meu!

CANTICO DO PAIS EMERSO – Natália Correia

Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.

Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;

Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora

Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,

Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;

Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres

E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.

Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.

E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.

AS ESTRELAS – Ascânio Lopes

Ele enamorou-se das estrelas e quis possuí-las.
E começou a construir uma torre para alcançá-las.
Mas quanto mais a torre crescia no ar
mais longe ficava o céu inatingível -
e as estrelas cada vez brilhavam mais.

Um dia, quando a torre estava enorme, fina, alta
e o céu tão longe e as estrelas tão altas
ele desanimou e pôs-se a chorar.
E debruçou-se no alto da torre alta.
Mas deu um grito de dor
porque, lá embaixo, embaixo, as estrelas brilhavam mais
no espelho das águas paradas.

ENSAIO DE CIÚME - Marina Tsvietáieva

Tradução de Décio Pignatari

Como vai indo com a outra?
Tão fácil, não? - basta um impulso
no remo - com a orla, a minha
imagem se borra, se afasta,

vira ilha flutuante (no céu,
- na água, não!).
Alma e alma,
irmãs, sim - mas, amantes, não!
Uma é destino; outra - sem fim!

Que tal viver com tal pessoa
comum - vida sem divindades?
Jogou do trono-olimpo a deusa-
rainha, abdicou - e a coroa

de sua vida, como fica?
Ao despertar, como pagar
o preço de imortal banal-
idade - como? Menos rica?

"Chega de susto e suspeita!
Quero um lar!". Mas... e a vida
só - com uma mulher qualquer -
Você - eleito de uma eleita?

Ah... E a comida? Apetitosa?
Você se queixa quando enjoa?
Depois do topo do Sinai,
Ir conviver com uma à-toa

da parte baixa da cidade,
uma coitada? Gostou da anca?
O açoite-vergonha de Zeus
ainda não vincou-lhe a estampa?

Entre viver e ser, dá para
contar? E como encara
o caro amigo a cicatriz
da consciência-meretriz?

Viver como boneca de gesso
- de feira!? Você me acha cara?
depois de um busto de Carrara,
um susto de papier-mâché?

(O deus que escavei de um bloco
só me deixou os ocos). Enleva
viver com uma igual a mil,
quem já teve a Lilit primeva?

Não lhe matou a fome a boa
bisca, que atendeu aos pedidos?
Como viver com a simplória
que só possui cinco sentidos?

Enfim, por fim...: você é feliz,
no sem-fundo dessa mulher?
Pior, melhor, igual a mim,
nos braços de um outro qualquer?

OLHOS AZUIS – Teófilo Dias

Na luz que o teu olhar azul transpira
Há sons espirituais, inebriantes,
Orvalhados de lágrimas - vibrantes
Como as notas da gusla que suspira.

A harpa, o bandolim, a flauta, a lira,
As vibrações suaves, cintilantes,
Facetadas, floridas, provocantes,
Do piano que ri, chora e delira,

Não traduzem o ritmo silencioso,
O perfume prismático, a magia
Do teu olhar inquieto, voluptuoso,

Que me levanta em ondas de harmonia,
Como suspenso manto vaporoso
À flor dos mares ao romper do dia!

terça-feira, 28 de maio de 2019

DEMOCRACIA – Jorge de Lima

Punhos
de redes embalaram o meu canto
Para adoçar o meu país, ó Whitman.
Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-olhados,
Catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,
Carumã me alimentou quando eu era criança,
Mãe-negra me contou histórias de bicho,
Moleque me ensinou safadezas,
Massoca, tapioca,pipoca, tudo comi,
Bebi cachaça com caju para limpar-me,
Tive maleita, catapora e ínguas,
Bicho-de-pé, saudade, poesia;
Fiquei aluado, mal-assombrado, tocando maracá,
Dizendo coisas, brincando com as crioulas,
Vendo espiritos, abusões, mães-d água,
Conversando com os malucos, conversando sozinho,
Emprenhando tudo o que encontrava,
Abraçando as cobras pelos matos,
Me misturando, me sumindo, me acabando,
Apara salvar a minha alma benzida
E o meu corpo pintado de urucu,
Tatuado de cruzes, de corações, de mãos ligadas,
De nomes de amor em todas as línguas de branco
De mouro ou pagão.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO – Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

MÃOS ESCULTURAIS – Agostinho Neto

Além deste olhar vencido
cheio dos mares negreiros
fatigado
e das cadeias aterradoras que envolvem lares
além do silhuetar mágico das figuras
nocturnas
após cansaços em outros continentes dentro de África

Além desta África
de mosquitos
e feitiços sentinelas
de almas negras mistério orlado de sorrisos brancos
adentro das caridades que exploram e das medicinas
que matam

Além África dos atrasos seculares
em corações tristes

Eu vejo
as mãos esculturais
dum povo eternizado nos mitos
inventados nas terras áridas da dominação
as mãos esculturais dum povo que contrói
sob o peso do que fabrica para se destruir

Eu vejo além África
amor brotando virgem em cada boca
em lianas invencíveis da vida espontânea
e as mãos esculturais entre si ligadas
contra as catadupas demolidoras do antigo

Além deste cansaço em outros continentes
a África viva
sinto-a nas mãos esculturais dos fortes que são povo
e rosas e pão
e futuro.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

ARTE DO PODER - Juareiz Correya

Os romanos inventaram
com leões e cristãos
o circo com pão.
Os brasileiros bolaram
com samba e com sol
o circo sem pão
do futebol.
Hoje o Brasil
descoberto de novo,
inventado de novo,
decretou o Estado de Circo
- sem picadeiro, sem palco
e sem pão,
com panos coloridos tapando o céu
um mágico desgovernado no planalto
e uma plateia de 140 milhões
de bestas e de palhaços.

DA LEVEZA DE SER LIVRE – Talis Andrade

Vencer o medo de ver
e conhecer
Vencer o medo
de pular da cama
para enfrentar a multidão
Deixar a prisão
a casa
o caixão
Desatar os laços
quebrar as alianças
com os inimigos
quebrar os angustiantes elos
com os governantes
e sair por aí

Livre
pelas ruas
Livre
dos flagelos do mundo
Livre
das contaminações
dos ídolos
Livre
da prostituição
Livre
do que é sufocado
e do sangue
Livre
subir as escadarias
do templo
dançando e cantando
louco de Deus
bêbado de Deus
dançando e cantando
na leveza
na inteireza de ser

AH, ESSA MULHER BONITA! - Robson Sampaio

Ah, essa mulher bonita!
Inventa e reinventa modas.
Primeiro, ajustando o corpo
e, depois, a alma,
só para nos agradar.
Por isso, suave é o dia,
doce é essa mulher...
Sorriso delicado, ar atrevido,
espírito irreverente,
misto de mulher e menina,
um quê de moleca
com um quê de sensual...
Enigmas em sintonia
com o verde-azul do mar...
Ah, essa mulher bonita!
Por isso, suave é o dia,
doce é essa mulher...

VOU ANDAR PELA LUA - Antonio Carlos Gomes

Vou andar pela lua
Quero ver lágrimas
Lavando desventuras
Molhando a saudade
Encharcando de felicidade
A poesia louca
Que corre na enxurrada
Do querer e não querer
Tentando encontrar
Na jangada de papel
Teu sorriso tão cruel
Levá-lo de aviãozinho
Para andar bem pertinho
Da lua que está no céu
De onde te olho
Sem te entender.

A ESTRADA DO SILÊNCIO – Valdeci Ferraz

Do livro “Terra dos Homens Clonados” (a lançar)

Sigo por uma estrada cujas margens
estão repletas de homens quebrados
vomitados pela floresta dos deuses vencidos.
À minha frente outros homens caminham
arrastados por uma fé que os levam à loucura.

No chão de terra negra as sombras desaparecem
e por um momento ninguém sabe o caminho.
O silêncio cai como uma mortalha de neve
e o instante que antecede a hora
é como uma garra de aço na garganta do tempo.

Para escapar eles caminham de costas
e não percebem a involução de suas mentes.
O pensamento agoniza
recolhendo seus tentáculos
com medo do fogo do inferno.
A estrada se alonga como uma seta infinita
e um deus diabólico destrói a rosa dos ventos.
Segue a turba pisando nas sombras ocultas
porque antes de tudo é preciso caminhar.

Todos se olham e se perguntam: quem somos?
Que estranha maneira é essa de estar?
Ainda existe um sonho para sonhar?
A estrada do silêncio amplia suas margens
para recolher os corpos dos homens quebrados,
pois dentro dela alguém caminha
na direção da luz.
Ouso então quebrar o silêncio da estrada
e lá do fundo de minha alma um trovão estronda
anunciando que somos o que somos
e não há razão para calar.

O POETA E O VINHO – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” (1979)

É uma coisa bem própria dos poetas
o beber vinho amargo como a vida
e amar a própria vida como um vinho
na amplidão de todas as mulheres.

É uma coisa muito própria dos poetas
perder as forças em todo amanhecer.
Ouvir o silêncio precisando de escuta
ao sabor do sangue de uvas entre os lábios.
           
Beber a vida é coisa própria de poetas.
Escutar pela saliva um aroma puro
de noites amplas onde o vinho é uma música
que torna um instante de hoje em dois instantes.

O poeta é um bêbado que sorve o hoje.
Não discute os problemas do amanhã.
É uma estrela mergulhada em um cálice
que a morte beberá após a vida.

sábado, 25 de maio de 2019

CIDADE – Luiz de Miranda

Que será do homem
que não sustenta
a sua fome
com pão, leite, feijão e ar?

Nada é menos livre
do que a fome
que mata o homem
e nada é mais livre
do que a palavra
que a revela
sob o sal das horas

Que será sob a cidade
do homem
onde não há lugar
sequer às letras noturnas do luar
aos peixes claros da alma

Que será do menino
que vive nele
a idade é mineral
emocional
e o tempo
esse cadáver embarcado
nos enche de mau
cheiro e de morte
a nos salvar

a música da esperança
o eterno pássaro
de nossa herança

Que cidade é esta
que nos cerca de luzes
mas apaga o feltro
de nossa infância
a febre de nossa voz
e deixa-nos ancorados
às esquinas
fotografia de fumaça e neblina

Que homem é este
que não se sustenta
que a fome o come
a partir do nome operário.

JANGADA TRISTE – Gilberto Freyre

Ao longe, mui longe, no horizonte,
além, muito além daquele monte,
como ave que voa desdenhada,
flutua tristemente uma jangada.

Nos zangados soluços do oceano,
quase desaparece o canto humano
de quem no mar e céu inda confia
porque em terra tudo lhe é melancolia.

Isso de terra firme e mar traiçoeiro
nem sempre é certo para o jangadeiro
mais preso ao fiel sal que à incerta areia.

Mistura ao grande azul as suas mágoas
e encontra no vaivém das verdes águas
consolo às negras dores cá da terra.

sábado, 18 de maio de 2019

A MULHER E A CASA – João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

ESTA VIDA – Guilherme de Almeida

Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.