terça-feira, 31 de janeiro de 2017

OS NÃO LEMBRADOS – Talis Andrade



Não decoro nenhuma poesia
e li mil livros.
Não recordo nenhuma paisagem
e andei por mil cidades.
Não recordo nenhuma cena de filme
não solfejo nenhuma sofrível melodia
não guardo as feições de nenhum rosto.
Dei sumiço as lembranças
apaguei meu próprio rastro
para que não fique nenhum traço
nenhum traço.

sábado, 28 de janeiro de 2017

RITUAL – Lílian Aquino



No mesmo dia
em que o filho deixou
a casa
(se afastando de costas
para olhá-la nos olhos)
ela resolveu plantar
um ipê

na sala

Num ato solene
quebrou o chão
e
revirou o solo
e
chafurdou-se toda
contente

E do desfeito
pelo rebento
ficou aquela cicatriz
na barriga
a estranheza do ser
livre
e o olhar aquela árvore
ainda sem flores
e se perguntar:

roxo ou amarelo?

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

BEIJO – Cyrano de Bergerac



Hercule Savinien de Cyrano de Bergerac foi um livre-pensador, que viveu na França entre 1619 e 1655. O pensamento racionalista apresentado por Cyrano foi algo raro na época, pois o Iluminismo começou um século após a sua morte. Defendia ideias consideradas ousadas para a época, tais como a de que a matéria se compõe de átomos e de que os animais são dotados de inteligência.

A palavra sorri e queima-se detrás do lábio que a deseja.
Beijo a brincar na boca e boca que não beija,
porque o pudor retrai esse desejo louco...
Sem querer, sem sentir, via-a desfolhar há pouco
a flor do galanteio, e passar n'um encanto
do sorrir ao suspiro e do suspiro ao pranto!


 Aclare um pouco mais a luz do sentimento:
nas lágrimas um beijo, é um deslumbramento!
E afinal o que é um beijo? Um céu aberto.
Juramento d'amor, feito mui de perto!
Numa promessa linda uma confirmação.
Ponto róseo a cair no i d'uma afeição.
Segredo que se diz a uma boca vermelha.
Num ponto d'infinito um ruído d'abelha...


 É uma comunhão com um sabor de rosas.
O respirar subtil das almas amorosas;
O precioso subir d'um coração à boca...
Luz que do lábio sai, numa volúpia louca!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

AVISO ADMINISTRATIVO


CÚPULA DA PEDRA – Talis Andrade

Poemas do livro inédito O Judeu Errante

Em Jerusalém uma pedra

Dos judeus a convicção
a criação do mundo
a partir de uma pedra

A pedra que estava Abraão
quando falou com Deus
A pedra de onde Maomé
ascendeu ao céu
para rezar com Deus

Em Jerusalém uma pedra
divide duas religiões
em uma guerra santa

Em Jerusalém uma pedra

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

CÁLIDO - Celso Mendes



e não ouvi
de tua boca
a seda
nem vi o sândalo
ou o céu
em teus olhos
a me falar de sol

por que, meu bem
minha palavra lacra-se
solitária
e muda
em tua cabeça
se é de teus dentes
o veneno
que me mata e grita
em gotas
e de tua pele
esta eterna
insolvência
cálida
que me faz viver?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

NOTAS DE SINFONIA INTERCALADA - Ivy Gomide - Rio de Janeiro/RJ


pétala por pétala
na boca do algodão doce
vozes algozes
emudecem gritos
de tiro-teio
eu tiro-teimo
em ti
apenas porque
o perfume
suspira
e aspira
na sequência da
sinfonia
interCALADA
notas orvalhadas
re escrevem
brincos
na lua.

sábado, 7 de janeiro de 2017

EU SOU O POETA DO CORPO - Walt Whitmann



Eu sou o poeta do corpo e sou o poeta da alma,
as delícias do céu estão em mim
e os horrores do inferno estão em mim
- o primeiro eu enxerto e amplio ao meu redor,
o segundo eu traduzo em nova língua.

Eu sou o poeta da mulher tanto quanto o do homem
e digo que tanta grandeza existe no ser mulher
quanta no ser homem,
e digo que não há nada maior do que uma mãe de homens.

Canto o cântico da expansão e orgulho:
já temos tido o bastante em esquivanças e súplicas,
eu mostro que tamanho nada mais é do que desenvolvimento.

Eu sou aquele que vai com a noite tenra e crescente,
e invoco a terra e o mar que a noite leva pela metade.
Aperte mais, noite de peito nu!
Aperte mais, noite nutriz magnética!
Noite dos ventos do sul,
noite das poucas estrelas grandes!
Noite silenciosa que me acena
- alucinada noite nua de verão!

Sorria, ó terra cheia de volúpia, de hálito frio!
Terra das árvores líquidas e dormentes!
Terra em que o sol se põe longe,
terra dos montes cobertos de névoa!
Terra do vítreo gotejar da lua cheia apenas tinta de azul!
Terra do brilho e sombrio encontro nas enchentes do rio!
Terra do cinza límpido das nuvens, por meu gosto mais claras e brilhantes!
Terra que faz a curva bem distante, rica terra de macieiras em flor!
Sorria: o seu amante vem chegando!

Pródiga, amor você tem dado a mim:
o que eu dou a você, portanto, é amor
- indizível e apaixonado amor!

QUANDO FORES VELHA - William Butler Yeats

Quando já fores velha, e grisalha, e com sono,
Pega este livro: junto ao fogo, a cabecear,
Lê com calma; e com os olhos de profundas sombras
Sonha, sonha com o teu antigo e suave olhar.

Muitos amaram-te horas de alegria e graça,
Com amor sincero ou falso amaram-te a beleza;
Só um, amando-te a alma peregrina em ti,
De teu rosto a mudar amou cada tristeza.

E curvando-te junto à grade incandescente,
Murmura com amargura como o amor fugiu
E caminhou montanha acima, a subir sempre,
E o rosto em multidão de estrelas encobriu.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

DÁ-ME TUA MÃO - Gabriela Mistral

Dá-me tua mão, e dançaremos;
dá-me tua mão e me amarás.
Como uma só flor nós seremos,
como uma flora, e nada mais.

O mesmo verso cantaremos,
no mesmo passo bailarás.
Como uma espiga ondularemos,
como uma espiga, e nada mais.

Chamas-te Rosa e eu Esperança;
Porém teu nome esquecerás,
Porque seremos uma dança
sobre a colina, e nada mais.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

ACENDO A LÂMPADA DE SAL DA MONTANHA – Carina Sedevich


Tradução de Ellen Maria Vasconcellos

Acendo a lâmpada de sal da montanha
ao lado de minha cama.
Solto meu cabelo,
recordando meus grisalhos invisíveis.
Me acomodo entre lençóis de fios
com a bata dourada da China.
Debaixo minha pele branca não deseja
nem em seus botões rosados
nem em seus sinais pálidos.
Sobre o travesseiro se escutam meus anéis
porque está fresco, talvez,
e se afinaram meus dedos.
O ouro, a prata, a ametista.
Lá fora a noite se espessa
porque terminou a lua cheia.
Começa o mês que precede ao inverno.

Que leve sou sem seus desejos.

Que doce corre a alma
em meu esqueleto.
Que certa é esta cara e estes flancos
que certos que são,
que delicados!
Minha gata me admira, branca e parda,
e eu admiro a ela em seu silêncio.
Até o perfume vermelho das flores
tenho.

Que leve sou sem meus desejos.

domingo, 1 de janeiro de 2017

IMORTAIS - Rafael Rocha

Do livro “Poemas Escohidos”

Quando somos crianças o dia é tão longo
A gente pensa que não vai passar
Com cabelos brancos o dia é tão pequeno
A gente luta para ele não findar

A criança brinca com o imaginário
Amigos e histórias de sua realidade
Os de cabelos brancos pensam em estuários
Tentando entender a mentira e a verdade

Para onde iremos?
Para que nascemos?
O que fizemos de errado
Para sermos crianças
E nunca imortais?