quarta-feira, 30 de outubro de 2019

POVO CRISTÃO – Luís Felipe Miguel

Era um povo tão cristão
Que votou
Pela tortura
E morte
De seus irmãos.

Era um povo tão família
Que votou
Pelo estupro
De suas filhas.

Era um povo tão cordial
Que tirou a máscara
E expôs
A banalidade
Do mal.

QUEM SABE? – Valdeci Ferraz

Não escutas o vento chorando na janela?
Não sentes a mão da noite abafando
os gemidos de uma alma inquieta?
Não vês que as estrelas desapareceram
e os vendedores de sonhos
se recolheram mais cedo?

Talvez seja preciso abrir a porta do quarto
para que o frio se aconchegue nos lençóis
e possamos tomar um pouco de vinho
cantando a canção
que nunca tivemos coragem de cantar.

Quem sabe o vento possa trazer o sorriso
que ficou encalhado no porto da solidão
e o véu do templo se rasgue de ponta a ponta
deixando transparecer
nossos corpos ressuscitados...
E aí se inverterá o caminho das ondas
e navegaremos mar adentro
tendo por companhia
o vento e a luz das estrelas.

Não escutas a chuva batendo no telhado
como vultos que procuram abrigo,
como sonhos em busca do sono,
como homem a desejar um amigo?
Tudo há de compor uma sinfonia final:
o vento, a noite, as estrelas, os lençóis,
o vinho, a canção, o sorriso, as ondas,
o pranto se transformará em riso
e como crianças brincaremos sobre o leito.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

SAUDADE DANADA... – Robson Sampaio

Recife,
cadê  teus arraiais,
canaviais, mucamas
e sinhazinhas?
- Casa-Grande

Recife,
cadê teu forró,
ciranda, maracatu
e frevo?
- Carnaval

Recife,
cadê teu mar,
pontes, praças
e rios?
- Beberibe e Capibaribe

Recife,
cadê teus boêmios,
bares, batida gelada
e mulheres?
- Poesia

Recife,
não mais te encontro
e sinto uma saudade
danada...

FANTASIAS – Antônio Carlos Gomes

Se conseguisse juntar
Em um mesmo momento
Todas fantasias frustradas
Que passaram em minha mente
Seria o Rei dos Astros
O Sol do Universo
A mágica do presente.

Mas recolhido
Nas sombras que se formam
Por detrás do monte
No poente,
Junto lagartixas e aranhas
No caldeirão dos desenganos
Que mostram-me humano.

Mas, dos vapores desprendidos
Da mistura estranha e sombria
Forma-se a dança dos anos
Com cores, com harmonia,
Dele brota um poema
Pois a vida sempre se inicia
No correr de uma pena
Que o papel acaricia
Nos vapores do viver
Nas fantasias do sonhar.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

UMA NOITE E OUTRA NOITE - Rafael Rocha


Ganhei um dia vencido
Debaixo da paisagem da vida
Buscando o poema invisível
Escrito na maturidade

Chegaram as ninfas da noite
Ficaram nuas nas horas
Da mais nova madrugada
Frente a meus olhos cansados

Rasgaram as minhas vestes
Abruptas me jogaram na cama
Deslizaram sobre meu corpo
Iguais a serpentes famintas

Perdida a noite nas fráguas
Meu quarto se fez bordel
E as ninfas das madrugadas
Renasceram no surubar

Acordei no dia seguinte
De quando o sol elegante
Dizia: - Outra noite igual
Nunca mais iria ser!

E lá do fundo das trevas
As ninfas da madrugada
Zombavam do deus Apolo
E preparavam o advir

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A DEUSA E A FLOR – Talis Andrade

No começo
algumas vezes amou
a linda fêmea
o desejo
torna mais linda
cristalizada em deusa
cristalizada em flor

No começo o gozo
a sensualidade de um corpo
o doce sussurro dos ventos
e do amor 

terça-feira, 22 de outubro de 2019

O POETA – Fausto Cardoso

Quando surges sonhando e tua lira canta,
Inveja abrindo vai, como esfaimado corvo,
As asas negras pelo abobadado e torvo
Horizonte, em que o Deus da rima se levanta!...

Reatas a obra a imortal da caravana santa
Dos teus mortos irmãos, vencendo o mesmo estorvo,
Tragando o mesmo fel, haurindo o mesmo sorvo
Do veneno letal, que aos cobardes quebranta!

Ornas a Terra e a Terra, ingrata, te apedreja,
Porque o Infinito tens na mente e os pões no verso,
A sustentar, cantando, intérmina peleja.

É um louco! — brada o mundo em tua luz imerso,
Mas segue o raio astral, que pelo Azul dardeja
Doirando as almas como o sol doira o Universo!

O BEIJO – Denise Emmer

Levou-me sem feitas frases
Somente passo e camisa
Roubou-me um beijo de brisa
Na quadratura da tarde

Jogou-me contra a parede
Rasgou-me a blusa de linho
Roubou-me um beijo de vinho
Diante das aves vesgas

Puxou-me para seu fundo
Rompeu a rosa pirâmide
Roubou-me um beijo de sangue
E bateu asas no mundo.

ALPENDRE – David de Medeiros Leite

Manhã cedo,
o sol preguiçoso.

À tarde,
a visita e o cheiro
(gostoso)
do café coando.

À noite,
o namoro casamenteiro
alumiado por vaga-lumes.

VENENO – Flávio Barreto Leite

Sou poeta
e porto venenos
que nem sempre
suporto.
Sou poeta
e quando fecho
a porta
e a carta
abrindo-me obsceno,
posto venenos
em postais pequenos
e o tamanho basta,
não importa.
importa
é que fulminando
a jugular
ele se alastra
para além do tédio,
onde a morte
não tem mais
nenhum remédio.
Basta esperar
que a vida
inoculada
atinja
a artéria aorta.

UMA NUVEM NO OCASO – Honório Armond

Viste, acaso um suavíssimo Poente
de cinza e rosa, em gamas merencórias,
iluminar-se inesperadamente,
numa rajada de clarões e glórias?

uma nuvem pequena, alta e morrente,
lembrando auroras, madrugadas flóreas,
foi tocada do Sol subitamente,
e eis que rutila em chamas ilusórias.

Há de, em breve, apagar-se ao vir a treva
que, a lento e lento, coleante adensa,
amortalhando o céu crepuscular.

Mas, ao sumir-se, no vulcão que a leva,
que sonhos trouxe!... que ternura imensa!...
quanta saudade refletindo ao luar.

NOVO RUMO! – Lino Guedes

"Negro preto cor da noite",
nunca te esqueças do açoite
Que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
Faze com que nossa gente
um dia gente se faça!

Negro preto, negro preto,
sê tu um homem direito
como um cordel posto a prumo!
É só do teu proceder
Que, por certo, há de nascer
a estrela do novo rumo!

MAIOR - João Pedro Fagerlande

o pássaro é maior que a gaiola

não suporta um poleiro
tamanha envergadura

os donos cortam as garras
retiram as penas

mas mesmo que lhe apaguem
as luzes seus olhos
serpenteiam o escuro

os donos não sacam
os furos da gaiola

que detém o entorno do pássaro
não a voz: canto
por onde há de escapar

ERA UMA VEZ... – Ronaldo Cunha Lima

Toda história de amor assim começa:
"Era uma vez...", em seu início tredo.
Cenário, personagens e o enredo
com muitas emoções, sonhos à beça.

Irei contar, também, uma história dessa:
Era uma vez um poeta, era um aedo
que viveu grande amor mas, em segredo,
somente em versos seu amor confessa.

Bonita história, encantador romance!
Contá-la, se eu pudesse, lance a lance,
voltaria a sofrer, chorar talvez.

Pois nessa história, "era uma vez" combina.
"Era uma vez" não começa mas termina.
Era uma vez um poeta, era uma vez.