sexta-feira, 30 de outubro de 2020

DIÁLOGO COM UM POETA – Heron Moura

 

Não é o homem que se move
mas o cenário,
pensou o poeta ainda criança
(quando na pista, prestes ao voo,
ao lado o avião apenas rasteja,
o nosso é que parece andando)
Vistos desse ponto da sala
os móveis parecem inertes
como só aviões num hangar –

sob uma sensação de dança
(e a dança é uma forma de voo)
que redesenha toda a sala
com o bico dos sapatos
(mas sem nenhuma escala audível
ou ruído de lábios na memória)
Sempre pensarei o cenário
como pensava o poeta criança?

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

HORÁRIOS - Rafael Rocha (vídeo)

A poeta Jessica Iancoski recita HORÁRIOS poema inserido no livro POEMAS DOS TEMPOS SOMBRIOS, do poeta pernambucano olindense/recifense RAFAEL ROCHA. O livro está sendo vendido pela Editora Essencial - São Paulo/SP. Quem desejar adquirir é só clicar no link abaixo. Preço R$ 25,00. Despesas de correio inclusas. 
 
Acordo às 7 da manhã.
Começo o dia.
As notícias são lúgubres.
Cada vez mais sombrias.
Homens e mulheres e crianças
Começam a ser adubos para a terra.
Solos quentes ou frios recebem corpos
Enquanto choros e rangeres de dentes
Ultrapassam fronteiras.
 
Almoço às 12 da manhã.
Sigo o meu dia.
Os noticiários das rádios e TVs
Criam rotinas estatísticas
Para falar dos mortos
E dos marcados para morrer.
Nem conheço mais as ruas da cidade.
Nem sei mais os sortilégios
Dos abraços e dos beijos.
 
Janto às 7 da noite.
Tudo está escuro.
O vento se enfia pelas janelas
Trazendo os fedores da morte.
Os que vão dormir pedem ajuda a um deus.
Nenhuma resposta!
Apenas o silêncio predomina.
Novas notícias. Novas mortes.
Tudo agora é mórbido.
 
Adormeço quando o relógio marca a meia-noite

QUASE UM MODIGLIANI – Geraldino Brasil

 

Cabeça e pescoço
com um ovoide e um cilindro
simplesmente faço.
E para a boca sem sorriso basta leve
traço e à maneira de um anzol
o nariz comprido e fino
de quem não enche plenamente o peito
de ar de um claro sol
de parque para menino.

Depois recurvo
o cilindro e inclino
o ovoide e eis pensativo
e triste como um velho de olhar turvo
meu pálido menino de blusão
azul e ainda palpitante
coração, que é como
só imagino e crio
coração de menino.

Faltam os olhos e vejo
que se longo nariz e boca sem sorriso
não traçasse
nem cabeça sobre o longo
pescoço inclinasse,
fora preciso só o olhar
de menino sentado em pesada cadeira,
mãos se prendendo como siamesas,
espiando a manhã que passou
sem levar ao parque todos os meninos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

ITINERÁRIO ÚLTIMO – Audálio Alves

Ao morrer: um camponês
- numa rede em suspensão -
quatro outros vão levando
(por caminhos que não findam)
a sua alva solidão.

Todavia, ah, todavia,
morre e morre o camponês,
vai e vem, e se oferece
no casulo de algodão.
Entre alfazema e alecrim
vai e vem
morre e morre, e não tem fim
ou a morte
não tem caixão.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

POEMA PEDREGOSO – Montez Magno

 

a João Cabral de Melo Neto
..............................
O que diz do verso o seu reverso,
áspero duplo na véspera do pulo
cabral nos cortes desertos da caatinga
é igual ao que se diz do seixo
roliço e uniforme no trajeto
que faz do rio ao seu local
de repouso, dormida provisória.
O que se diz do rio é o mesmo fecho
varal que se desdobra na restinga
sóbria, solar e promissória.
O solo sofre e cospe a pedra que demora.
Se os rios correm simples e ausentes
sem cuidados com quem está presente
a nós caberá não seguir tal exemplo
dizendo: o que pensamos são águas de um momento
fugaz, transitórias como o próprio tempo.
Por isso há de se ver que os rios correm simplesmente
sem notar que alguém está às suas margens
e as águas que passaram um dia, anônimas e silentes
não voltarão jamais do leito permanente
como nós que passamos uma vez somente
pela vida e a perdemos para sempre.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

UM POEMA SOBRE A CIDADE – Juareiz Correya

 

Um poema sobre a cidade
é arquitetônico estatístico
geográfico histórico urbanístico?
Um poema sobre a cidade
tem gente trânsito tragédias
ruas avenidas pontes viadutos
atropelamentos histórias nascimentos
naturezas vivas e mortas?
 
Um poema sobre a cidade
atravessa casas edifícios condomínios
desorienta números
e Institutos de Geografias e Estatísticas
reinventa a humanidade antiga
e nova que nela habita
e rejuvenesce o passado e morre o futuro
e perpetua o presente

Um poema sobre a cidade
é o tempo e não é o tempo
de criação e de danação
Um poema sobre a cidade
manda para o espaço a cidade
e é terra batida asfalto
árvores verdes e negras rio lama
atmosfera cósmica
ou apenas uma praça nua rua uma viela um beco

Um poema sobre a cidade
tem mários oswaldos bandeiras ascensos
drummonds hermilos cabrais
celinas vinicius thiagos gullares amados
pessoas florbelas hortas
adélias notaros jacis bruskys ledas
vanjas márcias marias
mariamas terras guaranis pedros floras
e um poeta que escreve
um poema sobre a cidade

Um poema sobre a cidade
é claro e transitável como
as Matemáticas e Cibernéticas Ciências
morre de amores e renasce amando
ébrio de versos e de fantasias livrescas
memorável como os endereços dos catálogos de bairros
impublicável como os jornais e as revistas de plantão
está acessível em todas as telas de computadores
e chegará às mentes e aos corações
por qualquer via da Internet
Um poema sobre a cidade
é só um poeta e a sua humanidade