quinta-feira, 30 de setembro de 2021

METAFÓRICO SILÊNCIO - Jane Hilda Badaró

Há dias ouço o silêncio...
quantos dias? séculos, milênios?
Nos meandros do Tempo
espírito livre andadeiro
atravesso os quadrantes do universo oculto
despertada pelo silêncio retumbante
dentro do meu próprio Templo!
Metafórico silêncio!
Emblemático silêncio!
silêncio que faz canção
qual alvoroço de passarinhos
canto que acarinha a alma...
Há dias ouço o silêncio
do Tempo
do infinito desabitado
e ouço também
o silêncio da Terra agonizante
de Homens sem valor
hipócritas de palavras brilhantes
de retórica pobre de verdades
cujo objetivo é salvar o estômago e o bolso
sem nada entender sobre o sentido da vida
existência de futilidade cruel
Há dias ouço o silêncio
Há silêncio no mistério
das horas que passam
no germinar da flor
nos verdes campos
há silêncio no ecoar do big bang
na expansão da consciência
cósmica
no Uni-verso,
no sopro Divino
Há silêncio no pulsar do coração
no parar do coração
aparente silêncio
Há dias ouço o silêncio
da minha respiração pulsante e forte
que busca equilíbrio,
no que sou
no que penso que sou
no que quero ser
Há tempos ouço o silêncio
das minhas indagações
das minhas respostas
dialética acalorada dentro de mim
sentindo as ondas vibratórias
que entrelaçam
meu espírito no tempo e no espaço
e nos outros espíritos...
Há dias ouço o silêncio
das palavras que disse
das palavras que calei
dos amigos que fiz
e também dos que não fiz
silêncio contido nos risos e nos urros
de alegria e de dor
Há silêncio no olhar que revela
há silêncio
no som do dia
no som da noite
na luz do Sol e no brilho do luar
no movimento das ondas
de energia de que somos feitos
e de que é feito o mundo
mundo que parece girar desordenado
mas que de fato existe um eixo
existe o Centro
o Poder que tudo gere
ainda que não possamos compreender seus desígnios...
Emblemático silêncio!
Metafórico silêncio!

ODE AOS MEUS PÉS - Sérgio de Sersank

 

(Relembranças)
Nesta noite em que me via mais só do que nunca
em que nem a música do rádio
a paz da lua cheia
ou as estrelas no céu sem nuvens
afastavam-me a melancolia -
esse gosto de licor amargo
que sempre quis evitar -
deixei a janela de vidro
sentei-me no leito hospitalar
e estou a tocar, agora, os meus pés.
Dão-me notícias
de dias há muito arrancados
ao calendário dos anos:
trilhas
pastos plantações pomares
estradas boiadeiras
vendas vales valetas
pontes e rios.
Recordam-me esquinas cobertas de grama
peladas de futebol
pedras e chinelos demarcando
limites ao gol.
Dias de pipas ao vento
bola a doer nas queimadas
pulos de amarelinhas
batidas de bets
partidas de bochas
jogos de malhas nas ruas vermelhas.
Velhos e sofridos pés.
Lembram-me a escola primária -
o edifício amarelado
de muros altos que não me continham
e onde a “Cartilha Suave”
do ler e escrever descortinou-me o mundo.
Saudade: aquelas manhãs de frio
o leite quente em casa
o pão de forno caseiro.
As aulas de Dona Filinha
inesquecível amiga:
ela toda atenção e carinho
e sempre um moleque ou outro
na sala querendo briga.
Enquanto corríamos doidos
os meninos
no recreio
ouvia a cantiga no pátio:
“Ciranda, cirandinha,
vamos todos cirandar
vamos dar a meia volta
volta e meia vamos dar.”
......
Ventura tocá-los ainda.
Estes pés rebeldes
cansados
Devolvem-me
aquela magia
de viver sem pressa.
......
À luz de um poste fraquinha
ouço meninas e meninos.
Tento revê-los, um a um,
nos toscos bancos de madeira
os pés se tocando,
a empurrões e risadas.
Noites de lua (folguedos):
passa-anel
rei-rainha
pique-salva
garrafão.
Noites escuras e frias (o medo):
Tempos de afrontamento
às almas penadas das ruas.
Eu e outros deles contando
causos de assombração.
.......
Perdi como perdemos
ao calendário dos anos
a infância
aquelas tardes de chuva fina molhando a roupa
seus dias plenos de sol.
.......
Meus pés. Estes pés. Tentativas
nem sempre bem sucedidas
de varar o pano dos circos.
Entradas triunfais no salão do cinema.
Passos a dois no primeiro namoro.
Passeios na praça da Igreja.
Estes mesmos pés no trabalho duro
mal remunerado
e em fuga da escola.
Meses de vadiagem
dificuldades sem fim.
O filho do sapateiro,
queria ganhar o mundo
e o tempo a girar continuamente
na ampulheta dos dias
fazia-o pescador que volta
sem peixe, ao cair das tardes.
Vieram lutas e lutas
ao longo da trajetória.
Um casamento acabou-se
ainda na mocidade.
O outro consolidado
na madureza, perdura.
Filhos nasceram, cresceram
e - partes dessa aventura -
deram-me netos, abriram
outros, melhores destinos.
Sabem estes pés
de envelhecidos sonhos
do menino que sou.
Agora -
chegada a vez de transpassar
a nebulosa ponte
que de tudo nos separa -
certo estou de retomar roteiros
em que não mais me serão necessários
e assim como de tudo me despeço
digo adeus aos meus pés.
Devo-lhes muito.
Sangrando nas sendas de pedra
trouxeram-me ao tempo
que ansiava viver.
Afastam-me agora a tristeza.
Dão-me a certeza
de que sob as asas da alma
Não param. Não podem parar.
Aos píncaros mais altos da existência humana
meus pés
meus velhos, sofridos pés,
hão de, por certo, chegar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

VIDA E MORTE SÃO ALMAS GÉMEAS – João Raimundo Gonçalves

 

a vida e a morte
são almas gêmeas siamesas
pegadas à nascença
a última avança quando a outra perde o norte
a primeira resiste às surpresas
a outra teme que que a vida sempre vença

a morte e a vida
são almas gêmeas siamesas
quando uma foge a outra chega
a morte ganha sempre a corrida
apesar das tristezas
e das partidas que a vida prega

morre-se de tanto viver
seja muito ou pouco o tempo decorrido
quem morre não sente mais nada
outros dirão que é uma vida que deixa de sofrer
sofre quem fica pela vida vencido
paira no tempo a memória pela morte geminada

as gêmeas vida e morte
jogam na rabia do medo ao destemor da aventura
escorregam na mais valia do segredo
onde se escondem os mitos do azar e da sorte
ignoram os sinais de ruptura
os avisos da memória coletiva quase a medo

ouço e sinto sinais que se confundem
tal é a desordem de mentes obscuras em desatino
que oprimem as gêmeas rente ao abismo
o pulmão da terra borbulha na poeira da ferrugem
uma partida de vida e morte ao seu destino
ou a última oportunidade da morte ao ceticismo