segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

SONHO AZUL – Rafael Rocha

Do livro “Loucura” – 2018

Qual o motivo de teus olhos serem claros
de um anil infinito e tão igual ao céu?
De onde vens para fazer-me insano
e pôr-me a negar os olhos mais escuros?

Qual deus tornou o teu olhar tão índigo
nessa face de anjo assim toda marfim?
Qual esperma criou a vida desses olhos
trazendo a marca de teu nome secreto?

Esse azul demais azul é atmosfera
onde o desejo faz morada e prisão
a atentar meus olhos velhos e impuros.

És apenas uma ninfeta encantadora!
És o quadro não pintado pelo poeta!
És a loucura de meu sonho azul!

A ADORMECIDA – Paul Valéry

Tradução de Augusto de Campos

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

NUVENS – Mikhail Yurevitch Lermontov

Tradução de Jorge de Sena


Ó nuvens pelos céus que eternamente andais!
Longo colar de pérolas na estepe azul,
exiladas como eu, correndo rumo ao sul,
longe do caro norte que, como eu, deixais!

Que vos impele assim? Uma ordem do Destino?
Oculto mal secreto? Ou mal que se conhece?
Acaso carregais o crime que envilece?
Ou só de amigos vis o torpe desatino?

Ah, não: fugis cansadas da maninha terra,
e estranhas a paixões e ao sofrimento estranhas
eternas  pervagais as frígidas entranhas.
E não sabeis, sem pátria, a dor que o exílio encerra.

sábado, 26 de janeiro de 2019

E ENTÃO, QUE QUEREIS? – Vladimir Maiakóvski



Tradução de E. Carrera Guerra

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI - Eduardo Alves da Costa

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

BEBER A VIDA NUM TRAGO E NESSE TRAGO... - Fernando Pessoa


Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas, boas, más,
Trabalhos e prazeres, e ofícios,
Todos lugares, viagens, explorações
Crimes, lascívias, decadências todas.

                              D'antes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa ideia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer,
Mudando sempre
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
                                           Quero
Afogar em bulício, em Luz, em vozes,
— Tumultuárias coisas usuais (
O sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
                                                Folgaria
De encher num dia, numa hora, num trago
A medida dos vícios ainda mesmo
Que fosse condenado eternamente (
Loucura — ao tal inferno.
A um inferno real.

SONETO DE INÊS – Ary dos Santos

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal

MANIFESTO - Nicanor Parra

Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet

Senhoras e senhores
Esta é nossa última palavra
- Nossa primeira e última palavra -
Os poetas baixaram do Olimpo.

Para os mais velhos
A poesia foi um objeto de luxo
Mas para nós
É um artigo de primeira necessidade:
Não podemos viver sem poesia.

Diferentemente dos mais velhos
- E digo isso com todo respeito -
Nós sustentamos
Que o poeta não é um alquimista
O poeta é um homem qualquer
Um pedreiro que constrói seu muro:
Um construtor de portas e janelas.

Nós conversamos
Na linguagem do dia a dia
Não acreditamos em signos cabalísticos.

E tem mais:
O poeta está aí
Para que a árvore não cresça torta.

Esta é a nossa mensagem.
Nós denunciamos o poeta demiurgo
O poeta Barata
O poeta Rato de Biblioteca.

Todos esses senhores
- E digo isso com muito respeito -
Devem ser processados e julgados
Por construir castelos no ar
Por desperdiçar espaço e tempo
Escrevendo sonetos à lua
Por agrupar palavras ao acaso
À última moda de Paris.
Para nós, não:
O pensamento não nasce na boca
Nasce no coração do coração.

Nós repudiamos
A poesia de óculos escuros
A poesia de capa e espada
A poesia de chapéu de aba larga.
Por outro lado, propiciamos
A poesia de olhos abertos
A poesia de peito aberto
A poesia de cabeça descoberta.

Não acreditamos em ninfas nem tritões.
A poesia tem que ser isto:
Uma garota rodeada de espigas
Ou não ser absolutamente nada.

Agora sim, no plano político
Eles, nossos avós imediatos,
Nossos bons avós imediatos!
Se refrataram e se dispersaram
Ao passar pelo prisma de cristal.
Uns poucos se tornaram comunistas.
Bom, não sei se o foram de fato.
Suponhamos que foram comunistas
O que sei é o seguinte:
Não foram poetas populares
Foram veneráveis poetas burgueses.

Há que dizer as coisas como são:
Apenas um ou outro
Soube chegar ao coração do povo.
Cada vez que puderam
Se declararam em palavras e ações
Contra a poesia engajada
Contra a poesia do presente
Contra a poesia proletária.

Aceitemos que foram comunistas
Mas a poesia foi um desastre
Surrealismo de segunda mão
Decadentismo de terceira mão
Tábuas velhas devolvidas pelo mar.
Poesia adjetiva
Poesia nasal e gutural
Poesia arbitrária
Poesia copiada dos livros
Poesia baseada
Na revolução da palavra
Quando deveria se fundar
Na revolução das ideias.
Poesia de círculo vicioso
Para meia dúzia de eleitos:
“Liberdade absoluta de expressão”.

Hoje nos persignamos perguntando
Para que escreveriam essas coisas -
Para assustar o pequeno-burguês?
Tempo perdido miseravelmente!
O pequeno-burguês não reage
Senão quando se trata do estômago.

Como vão assustá-lo com poesias!

A situação é esta:
Enquanto eles defendiam
Uma poesia do crepúsculo
Uma poesia da noite
Nós propugnamos
A poesia do amanhecer.
Esta é a nossa mensagem
Os resplendores da poesia
Devem chegar a todos igualmente
A poesia é bastante para todos.

É isso, companheiros
Nós condenamos
- E isto, sim, digo com respeito -
A poesia de pequeno deus
A poesia de vaca sagrada
A poesia de touro furioso.

Contra a poesia das nuvens
Nós opomos
A poesia da terra firme
- Cabeça fria, coração quente
Somos terrafirmistas convictos -
Contra a poesia dos cafés
A poesia da natureza
Contra a poesia de salão
A poesia da praça pública
A poesia de protesto social.

Os poetas baixaram do Olimpo.

CONTRAPONTO - Eeva-Liisa Manner

Tradução de Ricardo Domeneck

Tudo despencou do meu colo:
o jardim, o quintal, a casa, as vozes, os quartos,
a criança – segurando uma andorinha e um peixe –
caíram no chão
que empurrava suas pedras.
Eu sou um quarto vazio
cercado por pontos cardeais
e árvores embrulhadas em neve,
frio, frio, vazio.
Mas em minha mão
tudo o que amo ascende –
o quintal, as rosas, o ninho artificial,
perfeitos,
uma casa como vagem, sementes quietas
com morte e moção em seus tecidos,
o pequeno poço, o pequeno cão, a coleira invisível.
Quarto pequeno, janelas pequenas, pequenos, sapatos
de cadarços ágeis para o coração e a corrida.
Os sapatos correm entre câmara e átrio
e sobre o sangue dedos infantis constróem
um cais de pedra para os remadores de pedra.
Sonhos como pedras
nas profundezas,
lidos e dedicados à morte.
E pássaros afinados
flutuam janela adentro –
com um risinho nos bicos:
gotas de Mozart
zart zart

UM RAPAZ LATINO AMERICANO – César Gilcevi


os pretos me aceitam branco
os brancos me tratam servo
a certidão atesta pardo
os índios me convidam irmão
deus me adestra cão
cavalo me honra o exu
oxóssi me guarda seu filho
homem a mulher me pragueja

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

O RAIO DE SOL FURANDO A NUVEM MAIS DENSA - Divina de Jesus Scarpim

No dia de ser triste uma alegria chegou
como um intrometido e inadequado monstro
que tivesse cara
cheiro e voz
de aberração.
Em espírito
olhar e sentimento
de gente mais que humana
e mais que anjo
Como aqueles seres para os quais
o ser bom é o natural
E naquele dia
para ver o brilho
ninguém precisou de sol.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

ACUSAÇÃO – Alberto Bresciani

Você me acusa
pelas sombras
que nos cobrem

Não tenho a quem culpar
Guardamos a chave
quando passou a vigésima quinta hora

e os deuses de que fala
nunca souberam de nós
Estamos abandonados

na última vez
na impossível desdobradura
E eu afirmo:
                                                                                  
amanhã ainda seremos
somente os dois
o verbo coagulando no escuro.

ADEUS, MEU CAPITÃO! - Robson Sampaio

Sol de fogo,
terra batida,
punhal e mosquetão.
Treme a caatinga
com medo do Capitão.

Calam-se, as armas!
Maria Bonita com
a flor na mão.
Treme em desejos
o amor de Lampião.

Fogo cruzado,
tocaia grande,
só danação!
Treme Angico,
Adeus, meu Capitão!

domingo, 13 de janeiro de 2019

SOBRE PEDRAS E SEMENTES - Sandra Fonseca

Coisas silenciadas
Respiram como um peito
De um pássaro
Na véspera do voo
Como o pólen disperso
Na imensidão
Como o milagre
Escrito no fruto
E no pão
A semente arde
Em seu estado de pedra
Como uma hora que não tarda
Inclino-me
Às pedras dormentes
Pousadas
Graciosas ao longo
De um mio
No leito da estrada
E adivinho
A graça da semente
Que na pedra
Sonha
Ser grão
E arde

OS OLHOS – Pollyanna Furtado

No meio da colina dourada,
havia milhares de olhos
de tons e formas distintas.
O branco ovo de pedra
brilhava um verde esmeraldino,
•escondendo o viço nas brutas rochas.
Uma mina de gemas, ágatas,
rubis de fosco brilho
escondidas na montanha rochosa.
Minas secretas,
segredos do mundo.
Olhos sólidos e vívidos
miravam-me do alto
da montanha de livros.

FIDELIDADE - Lucia Aizim

Antes que todas as luas se desfaçam
e sobrevenha o grande mistério.

Beberei seus pânicos e uns restos de luz
quem sabe de que indefinida existência.

Talvez advindo de hábitos já distantes.

Então como todos os dias, não mais
como alguém que habitara a terra.

Tampouco criatura de outros espaços.

Mas como alguém que, retomando
o caminho habitual.
Contudo diferente.

Prepararei o repasto,
enfeitarei com frutas
o mesmo prato de cristal azul.