sábado, 31 de julho de 2021

GUME DE GUEIXA – Jandira Zanchi

 

Sou uma única mulher
quando a trombeta anuncia
um inverno sem tropeços.

Os legionários da palavra
espiam sua falta de dados
como me fiz por nenhum motivo
conheço o luxo de ser nua e insofismável
inquestionável é a questão e o próximo dia.
Também invoco nas santas armações
da luta contínua por porto algum
as desculpas estilhaçadas em farpas
dos ausentes cansados em dentes de ogro.

Mas me canso descanso de meu fel.
Ardia na boca do estômago a fúria da pretensão
– esqueci-a retaliada no sofá branco e bagunçado –
deve haver algo melhor do que essa faca
gume de gueixa
a ponta de prata que rebola a qualquer ultraje
para dentro através da margem.

e porém... como dizia tenho azia
dor de baço e um cansaço...
aí retomei a pena e o pó dos livros
a lide das pernas e a busca do pão
pensei no amor como um condimento vespertino
dos enfeites adiei o aprumo e por três ou quatro
minutos dos restantes sorri e adormeci
ali ao pé do carvalho planto, morena,
serena e de orvalho em pé e sombra
afogada e deslumbrada
– o nome daquele é o mesmo deste?
Estes os problemas e sua função.

VANÍSSIMA SENHORA - Fausto Antônio

 

I
Vaníssima,
na brevidade dos espelhos,
braço do abismo onde regresso.
A mesma face, a mesma noite,
e da primitiva água
fixam-se enormíssimas bocas.
As águas gorgolejam, olham.
E dessas portas soerguem-se máscaras
afundadas e de olhos plagiados
pelos quais o visgo relinchou,
incendiou convulso os cabelos.
Enquanto os olhos batejavam,
das entranhas saíam flores,
um nó ofegante e deles,
eriçados, cavalos ungidos sibilam.
Éguas de bocas e relvas
fendem tamas e rajas pelos poros.
Sinos resistem, uivos domados
sobre as frontes, já despidos,
põem cogumelos e se lambem.

II
Com desdém a roda gira.
A carne se abre em fendas,
}cascas dissolventes, braços estanques:
o dia e a noite tinham as pernas
estiradas sobre estribos.
O doido o chicote dardejava.
Depois estugava.
Logo uma pausa de estupor.
Depois vozes, amplidão de pêlos
e além: há dias e noites de olhos
germinados, de narinas que se incham.
E vão juntos
até estorcerem, moverem convulsivamente
a luz e o escuro onde colados:
o dia esguichava lavas;
a noite esgueirava breu.

III
Sobre o silêncio
éguas de lágrimas, olhos gordurosos
e línguas enganadoras
pelas crinas desceram atraídas.
Pisam pedras; alongam sempre
e eternamente suas bocas.
Em sal que é água, roucas descidas:
sabem que não é noite-,
sabem que não é dia.
E pedem a palavra para não serem
confundidas com mais e mais cavalos.
Um tisnado espirra, rói,
outros batem asas, cristas,
cascos e formam círculos de cânticos.
Patas sobre patas
ardentes vergam as crinas.
Em brasa que é fome,
cascos contra cascos
pendem, descem rinchos.
E mil vezes sobem à noite.
Porém de sua boca, por fim,
muito ocultamente,
sabem que não é noite;
E da imagem contemplada
sobem vozes roucas do ar,
asas fumegantes, veludosas,
brasas, águas e nuvens sem vozes.

IV
Face atrás da face,
suntuoso lodaçal,
berço ou útero?
Lá está o nada,
o intangível, e irrompe,
no hálito cuja voz
repousas, abismo,
uma garganta.
A linguagem e dela mesma,
à proporção que a voz recua,
a noite e o dia
que escondes entre os cabelos.
Todavia uma concha cobre o poema
e respinga ungida no gargalo
cujas mãos atadas ancoravam garrafas
claras, escuras, mas, além da ilusão,
no interior dos olhos brancos,
num profundo esvai-se o tempo.
No seu bico imenso, espessas noites.
Na mesma face, em reveses tão agudos,
há as crinas... os mares...
As plantas e os cabelos dormem.
Nas noites furam o véu.
E o laço branco é como o dia.

V
No limbo liso, Vaníssima,
contemplei demoradamente
as pedras, além dos olhos.
Ali no amplo sem fim.
Olhei várias vezes
e várias vezes voltei só.
Inclinei-me para solver o vazio.
E como num rito:
a poesia tinha a cor dessas pérolas,
que a água não limpa,
que o sol não reflete
no olhar de quem olha,
olha e murcha no olho,
a água de sal, um chafariz
liso em que, ocultamente,
miram-se garrafas friíssimas
ou pedras encantadas.

VI
No vidro que é só lua
sob a vidraça, em suas noites,
no seu rumor ao vento,
numa face; os cristais
desnudassem essas máscaras
de crianças que, nos olhos adultos,
os olhos femininos insinuam.
A contrapelo, numa outra margem,
enquanto os olhos esculpiam,
na mesma proporção,
uma imagem dela e muito feminina.
A lua jogou espadas dessas chaves frias.
E canta, canta num pêndulo torcido
cujas imagens debruçam vestes femininas.

VII
Às vezes vidros, vidros
e relógios de rosários.
Ante a face refrangida,
o som dos cascos...
e as mortes corrosivas nas gengivas.
Outras vezes, sem repouso,
nas conchas de Deus,
suas bocas de urina,
cujos óvulos, consoantes sopros,
transpassam num ovo inaugural:
umbigos adormecidos que, enleados
sob as águas, arrastam pérolas,
infensas pedras e delas me visto,
e delas me alimento.

VIII
Mas eram, esculpidas sob fímbrias
femininas, desde a eternidade,
dessas bocas de urina.
E, sobre mim, por um instante,
tocaram o céu e a terra.
E tinham as vozes e os silêncios
das cidades Descalvadas,
no entanto, estavam sobre mim
bocas fermentadas batendo.
Mas eram bocas intermináveis
daquelas de cujas mãos só refulgem,
sob a vidraça descida,
fronte de prata em que range
uma fome sem saber por que...

sexta-feira, 30 de julho de 2021

CORPOS PROIBIDOS - Therence Santiago

Corpos proibidos,
Carregam marcas de um tempo
Atemporal.
Carregam versos de rimas
Que agora
Não possuem sal.
Corpos proibidos
Latentes desejos errantes
Que inconstantes
Mexem com a libido.
Corpos proibidos,
Dançam uma música silenciosa
Que não mais toca
Em nenhum possível disco.
Corpos proibidos,
São como anjos caídos,
Repletos de sensações,
Inundados de sentidos.
São corpos proibidos,
A poesia fabricada
Em outras épocas,
Em outras datas