segunda-feira, 31 de agosto de 2020

DA LÓGICA DO VERSO EM RASA FEIÇÃO – Aurélio Aquino


Decreto
a lógica
do meu verso:
tudo que lhe cabe
é o verbo
e uma certa ilusão
de que palavras
são ondas
dos mares que carrego
e que se inventam baldias
nas horas em que as meço.

O VERÃO PARTIU – Arseni Tarkóvski


Tradução de Paulo da Costa Domingos
......................
O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto

tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto

nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto

agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto

nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto

A CHUVA DE SANGUE – Adrienne Rich

Tradução de Maria Irene Ramalho
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Nas pedras quentes da vida naquele ano de breu,
Uma chuva irada, de sangue vermelha, choveu.
Sob as arremetidas daquela aridez molhada
Jardim algum se ergueu, ou cresceu haste tombada,
Como de um céu sem sol todo o dia choveu
E os homens voltavam das ruas de terror
Todos manchados daquele desnatural icor.
Sob a noite os amantes irritados não apagavam
A luz, mas por sobre o seu respirar escutavam
O som que ouve na morte quem está para morrer.
Cada um perguntava, e ninguém ousava dizer
Que ominoso sinal naquela torrente de fogo caía.
E jazíamos toda a noite, enquanto em cima chovia
Forte a chuva de pingos como se sangrasse o céu;
E cada madrugada despertávamos para aquele escarcéu
E os homens sabiam que podiam estancar a ferida,
Mas todos amaldiçoavam a cidade acometida,
Os telhados culpados pela chuva fustigados.

domingo, 30 de agosto de 2020

PONTUAÇÕES METAFÓRICAS – Genésio Linhares

Vírgulas são como pingos de sangue
Que caem do meu rosto
Como pingos amargos de morte
Ou de vidas de dor e sofrimento,

Pontos de interrogação são como árvores
Na estrada do meu existir.
Na verdade, vivo entre florestas
De dúvidas e incertezas,

Reticências são o não dito,
O mistério das santas noites profanas,
O véu dos segredos humanos,
Os beijos não dados na cama dos solitários,

O ponto e vírgula, as pausas para a ilusão,
Para o sonho do que queremos, mas sem poder,
Sem nenhum poder divino arrebatador,
Construções imponentes a deixar vazios,

O ponto o nosso planeta perdido
Neste vasto universo em que vivemos,
O alfa e ômega dessa nossa existência
Onde vagamos sem causa aparente e trágica.

A GUERRA – Gerald Brenan

 

Tradução de Pedro Fernandes
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Deambulo por jardins abandonados,
e arranco as últimas flores de novembro.
Os escombros caídos sobre as rotas de acesso;
a madeira podre, ainda pintada de verde,
foi uma vez o canteiro de ramagens
que estiveram envoltas em madressilva.
Os caracóis saíram da caixa da fronteira.
O musgo é verde sobre as rochas.
As flores de pedra, todas mortas.
Vejo a cabeça seca de um girassol.
Oh, girar não mais com as horas!
Murcham todas tuas flores amarelas.

sábado, 29 de agosto de 2020

CINZAS – Juan Goytisolo

Tradução de Pedro Fernandes
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1
Cinzas
já sem brasa alguma.
Tudo consumado.
Nada é a chama
que acendeu,
o ardor que dá vida
à voz e à imagem.
Tudo se extingue
e dissipa
a embriaguez do instante

2
Ao admirar teu corpo,
de membros rijos e vigorosos,
lamento minha degenerescência
na ficção do tempo.
Impossível recolher-se
ao peito hirsuto
e ao vigor de teus braços.
O abismo de um século nos separa.
Mas tua apagada imagem,
ao fio dos anos,
desafia
o efêmero mesquinho
e me concede,
dono do espelhismo,
tua plenitude recobrada.