sábado, 30 de abril de 2022

TEMPOS – Guilherme Scalzilli

Onzes de janeiro de dois mil e dois
haverá aos bilhões.

Agora é daqui
a pouco.

Dez minutos
sequer têm tempo
para esses seiscentos segundos
que os recheiam.

As hélices dos ponteiros,
as sombras girassóis,
a areia que esvazia,
enquanto anunciam,
sonham perenidades ínfimas,
prenhes de acasos remotos,
nanoabismos de augúrios
que orbitam num infinito
de culpas, anseios e júbilos.

Agora,
o agora
já era:

brilho cansado,
expira no olhar do bebê
– a mesma luz anciã
que sorriu nas pupilas fundas
do seu avô quando nasceu.

Seiscentos mil milésimos de tempo:
memórias de letras
que terminam nunca;
nódoas que não vemos
num fotograma negativo
daquele ímpeto que viria se.

Tempo é,
faz tempo.

Minutos, segundos, milênios
(é?)
são momentos.

Mas o tempo
– esse dá medo.

POEMAS de Sílvio Roberto Santos

 

VÉRTICE

Há flores triangulares
que não vivem de sugar o sol.
Brotam cotidianas em qualquer quintal.
Seu néctar, sal que cheira à vida.
De cor vária são tais flores.
Dissimuladas,
conduzem o segredo existencial.
Diminutas, ofuscam.
Percebidas, atormentam.
Inexistentes, devoram.
Dessas flores o perfume tem diversas faces
em pétala única.
No decorrer das noites, escorrem doces
num movimento definitivo,
e, furtivas, ouvem o crepitar humano.
Em manhãs assépticas, surgem renovadas
nos galhos plásticos do varal,
e quase são pássaros.
..........
CONTINGÊNCIA

Chegas, e estás vestida de alegria
para uma festa em que serei silêncio...
Tua proximidade aquece e vence o
tempo nu, nesta noite tão vazia...

E chegas para não ficar — sabemos.
Assim a vida molda os desencontros
e vamos nos perdendo nos encontros
onde é urgente o que jamais vivemos...

Partes, e minha dor mais escurece
estas horas imóveis... Tua ausência
um pouco de perfume mais acresce...

Espera-te, feliz, alguém à frente...
E porque poderias sem urgência
Ficar, partindo ficas permanente...

ROMANCE DO PANTAJU – César Leal

 

   (Autobiografia)
....
Nasci numa casa grande
dos Inhamuns, no Ceará,
terra onde engorda e cresce
o melhor gado que há
em todo o Brasil-Nordeste
se a seca não o devasta:
é o vale do Jaguaribe,
terra dos Feitosa e Monte,
terra dos Caracarás,
dos Leal, dos Cavalcanti.

Muito jovem fui treinado
nas artes do pastoreio
- criei cedo um nobre estilo
no desafiar de peito
ao cinzento aço bicórneo
que se aos homens degrada
no perfil nobre de um touro
o faz belo e respeitado.

Seguia sempre o meu dono
junto ao pataleo do gado,
olhos recuados na sombra
de uma tranquila humildade,
patas pisando ligeiras
os ossos da relva parda
Circundava-me o pescoço
de leão, quase de touro,
uma coleira de couro
com três argolas de prata.

Chamavam-me Pantaju
- pelos de bronze polido -
quando o solo ao sol rachava
nas margens do Jaguaribe
punha meu rabo de molho
no limo sujo do rio;
meus dentes da cor do orvalho
mordendo jamais feriam,
exceto o touro zebu,
terror de outros Pantajus.

Termino aqui nesta quadra
minha pobre biografia,
tu, César, foste o meu dono,
conta o resto em poesia!

Visita à

Recordas da antiga festa
de São João? Fomos à aldeia.
Tu, um pobre cão rnatuto,
raramente ias à feira;
na pensão nos hospedamos,
ficaste só no quintal,
não me negues que teus olhos
eram águas assustadas
com o fogo dos buscapés
e tanta cinza escarlate.

Depois de jantarmos peixe
por anzol roubado às águas
saíram à rua contigo
os meus sete anos de idade
que acompanhavam Manuel
( aquele que foi meu pai,
sertanejo de oito secas
que morreu tangendo o gado ).

da necessidade de ser bravo

Entramos num bar e tu limpo combate
aceitaste
ser bravo quando um cão semileão, o maior
cão da cidade
de rosnar tempestuoso, coleira
bordada a prata,
veio a ti como um oceano bramindo,
a cauda empinada,
focinho de terremoto, cheirar-te
a raiz do rabo.
lembro teu salto relâmpago, três vezes
menos que um raio,
tamboretes e cadeiras rolaram
sete na sala,
ambos de corpo caíram, ambos
nos pés se firmaram,
depois alcançaram a porta, lutaram
sobre a calçada,
Já na rua corre o mijo do semi-
leão vencido.

Retorno à Fazenda

Quando a alva abriu as portas
à lenta fuga do orvalho
ao bom leite regressamos!
Junto ao curral tu paraste.
Nos olhos havia amor
a contemplar nosso gado,
depois foste até Anália
(minha mãe e tua amiga,
sertaneja, como ele,
que morreu de febre hepática).

O desaparecimento

Mas, numa tarde de agosto,
regressávamos da caça
ao passares na pedreira
que fica ao sul do quintal
cipó-mole-peçonhento
lançou em ti seu veneno.
No outro dia, em Belmonte,
em Belmonte, eras memória:
muitos anos navegaram
mas se te lembro te choro
e indago dos ventos tristes
que comeram teus soluços
nos campos leves da infância,
se ouviram em terras da Ásia
ou trazem dentro de si
o teu lúgubre ganir...

Todavia, os ventos calam.
Nada me informa o teu nome.

Procura e pesadelo

Por que então essa busca
de cinzas idas no vento?
Por que fitar nas esquinas
os altos fornos do tempo?
Por que procurar-te, Amigo,
jovem cão, de minha idade,
se a voz dos cães não se escuta
dentro das grandes cidades?

Perdoa o romance rude!
Não o fiz, vi-o num sonho
escrito, no teu focinho,
doloroso, quase humano.

Tu que encheste de poesia
os campos longe da infância,
triste, em sonhos me apareces,
olhos sitiados de sombras:
e somos ambos perdidos
numa noturna montanha.