sábado, 23 de abril de 2022

GALOPE À BEIRA-MAR – Luciano Maia

 

Para Tereza Tenório, Jaci Bezerra, Pedro Américo e Sílvio Roberto de Oliveira
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Abrindo os espaços da longa memória,
escuto uma voz do relembro que abala
o acento matuto do gesto e da fala
da lenda-epopeia, de canto de história.
Revejo os avós, seu tempo de glória,
caminhos tão noite do seu cavalgar.
Amor-utopia do chão secular
da casa-do-alto, da velha aroeira,
lembrança a galope, roçando ligeira
as crinas do vento na beira do mar.

À força da chuva, qual bicho, se esconde
o sol tão presente no tempo-perigo
do solo Nordeste, perene jazigo
de bichos e plantas, sem quando nem onde.
Se a chuva nos ares, nas nuvens estronde,
é tempo chegado do rio passar.
Semente se lança na terra, a brotar
tão frágil, tão tenra colheita-esperança,
que a morte apressada por vezes alcança
sem ter nunca vindo pra beira do mar.

Roçando os espinhos do cacto acendido,
vencendo o mormaço da pedra-sertão,
galopo sem medo o veloz alazão
no traço rimado do verso medido.
Meu canto é de estrada, caminho estendido
no dorso da ideia do verbo lutar,
semente madura que vai germinar
da lavra do canto, por isso não calo
o aboio-vaqueiro, soltando o cavalo
do verso-repente na beira do mar.

Manhã ainda noite, linguagem ronceira
dos que se levantam de todos bem antes,
a fala ofegante dos velhos feirantes
levando à cabeça seus potes à feira.
O berro-bezerro lembrando a porteira
à hora de ir ter ao curral e tirar
da mãe todo o leite e deixá-lo a sugar
as tetas vazias da vaca tão mansa
e a flor estavento que gira e descansa
na brisa-lembrança da beira do mar.

Mourão, pau-a-pique, curral, boi de raça,
fogueira estalando na marca dos ferros,
o laço certeiro, a derriba e os berros
subindo ao abafo da preta fumaça.
Os goles no alpendre da boa cachaça,
tropel de novilhos, voltando ao seu ar;
a fala arrastada dos velhos a dar
as mostras de quem quando moço gozou
das mesmas delícias e o tempo passou
mas canta e relembra na beira do mar.

Sovela, serrote, mourão e martelo,
quadrão oitavado, galope e sextilha
emprego na lavra da rima que é filha
do verso esculpido, moldado a cutelo.
Navego a distância entre o feio e o belo
e nessa viagem procuro encontrar
enfim o poema que sirva de par
ao canto formoso da mãe-natureza,
mas não alcançando tamanha beleza,
consolo o meu verso na beira do mar.

Caminhos cruzados à força dos dias
que fazem-se noites, por longes demais,
exílio dos ventos que agitam varais
e as asas tão leves das aves esguias.
A volta ilusória, nas fotografias,
sem tempo, sem fala, sem nada guardar
do hoje, encerrado no nunca encontrar
o outrora deixado por trás da barranca
do rio que passa por nós e destranca
as portas dos olhos, na beira do mar.

Tinindo as esporas ao vento que arde,
cavalo e vaqueiro, de sela e gibão,
são donos da lenda do boi barbatão
que a morte alcançou, no lombo da tarde.
Herói sem notícia, sem fama ou alarde,
virou velho e mudo, prefere calar
a história hoje ingênua do seu campear
nas longas chapadas dos tempos de outrora,
já tendo por isso até vindo embora
findar seu galope na beira do mar.

Mal deita-se o sol em seu berço de ouro,
levanta-se a lua, vestida de prata.
Faz-se hora propícia à canção-serenata
na tarde de missa, quermesse e namoro
O pinho afinado começa o seu choro
e a linda morena vem calma, embalar
um sonho incontido de poeta a cantar
uns versos tão cheios de amor e desejo,
poema que fala do mais louco beijo
roubado ao murmúrio da beira do mar.

Cantor dos alpendres, ao vento das rimas,
sorvendo as cantigas chegadas da noite,
trazendo em seu bojo quentura de açoite,
violas-ponteio, bordões, notas primas.
O travo-caju e o amargo das limas
cortando as ardências da cana a alagar
gargantas dispostas ao canto-avatar
na roça-palavra de bocas loquazes;
com a moça praiana vou fazer as pazes
trazendo o sertão para a beira do mar.

Palavra vertida na voz desterrada,
caminhos cumpridos no fado do povo,
e um sol rotineiro que queima de novo
a mesma epiderme de rugas vincada.
O oitão sem reboco da casa deixada
atrás da colina, suspensa no ar;
a rosa impossível, de nunca brotar
do pé-de-fulô da donzela Maria
e o pé na estrada, em fatal romaria,
até que se perca na beira do mar.

Cantor das coivaras queimando o horizonte,
das brancas raízes expostas à lua,
da pedra alvejada, da laje tão nua
guardando o silêncio da noite no monte.
Cantor do lamento da água da fonte
que desce ao açude e lá fica a teimar
com o sol e com o vento, até se finar
no último adejo da asa sedenta,
que busca salvar-se da morte e inventa
cantigas de adeuses na beira do mar.

Eu canto o galope medido na idade
de todas as coisas, janeiro a dezembro,
o tempo-menino que agora relembro...
sorvendo o que resta da tal mocidade.
O certo é que em busca da pura verdade
passado e presente é preciso habitar.
Futuro é o tempo da safra provar
do que hoje é o mais fundo e mais vivo desejo.
Sou como o incansável, tenaz sertanejo
que planta o sertão cá na beira do mar.

A seca lagoa, fendida e escura,
nos lembra um mosaico, de cor tão igual,
porém a sua forma é poligonal,
tal como convém ao terreno em secura.
Pois essa erodida e disforme textura
é marca ferrada do chão secular
da pátria Nordeste, que habita o avatar
das chuvas-verão, de invernos sedentos,
espírito jocoso de muitos inventos,
histórias que ouvi cá na beira do mar.

O pai disse ao filho, que ia-se embora:
- "É hora de planta, meu fio, num arribe,
é já que mais chove e rio Jaguaribe
traz água pra roça, em cima da hora".
Sem crer no seu velho se foi e agora
recebe a encomenda que vão lhe entregar:
(espigas, feijão... ) e então põe-se a chorar
com pena de ter desertado da roça
deixando a família na antiga palhoça
e ele sozinho, na beira do mar.

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