domingo, 24 de abril de 2022

POEMAS de Lucinda Persona

 

SOPA DE ERVILHAS

Em minha mesa
no meu prato
vai caindo a noite
lenta e silenciosa
como um veneno do tempo.

A sopa de ervilhas está quase fria.
À primeira vista
é um suave musgo
estancado na louça branca. Depois,
porção de um pântano distante
aguardando o natural mergulho
do objeto que mistura e remexe o fundo.

Não tenho fome
não reparto minhas horas com filhos
nem sei por que uma célula normal
se desgoverna.
A tristeza é tão perigosa
põe um nó na garganta
e usa agora esse disfarce:
é uma sopa verde envolta em trevas
que vou tomando devagar.

Em tempo
a alegria também existe
atravessa os anos
mas
numa escala decrescente.
.........................
MODO VELHO DE ACORDAR

De repente
num modo velho de acordar
abro a úmida casca noturna.
Sou folha? Inseto? Passarinho ou gente?
Que dia é hoje? Que horas são?
Onde está o homem que dorme comigo?

No meio das suposições
minhas pálpebras amarfanhadas
são peso e desproporção,
minhas córneas não entendem.
Dói, na penumbra, o reajuste dos meus ossos.
Dói a bexiga que tem rígido horário.
Dói o cotidiano no meu caminho.
..........................
AGORA VOU CORTAR ABÓBORAS

Aquilo que a vida diária
há de oferecer
e sem que seja
numa ordem fiel
eu posso contar ao mundo

Cada instante é único e decorre
na convulsão das imagens
quase sempre intoleráveis
pelo muito ou pelo nada a ofertar
Proclamar abertamente
que agora vou cortar abóboras
(abóboras em cubinhos)
é embrenhar-me no contragosto
que me governa
(o único método verdadeiro?)

Palavras são meios de vida
gestos também o são
Eu sou a soma de muitos destinos
não há razão para pensar
numa realidade menor
Explicar de outro modo é dizer
que em todo agrupamento humano
há um germe antiquíssimo de solidão.

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