quinta-feira, 28 de abril de 2022

POEMAS de Paulo Henriques Britto

 

PÓS

Antes era mais fácil — sim, porque era
mais difícil, havia mais em jogo,
e o tempo todo se jogava à vera.
Precisamente: mais difícil, logo

mais fácil. Porque sempre se sabia
de que lado se estava — havia lados,
então. E a certeza de que algum dia
tudo teria um significado.

E nós seríamos os responsáveis
por dar nomes aos bois. Havia bois
a nomear, então. Coisas palpáveis.
Tudo teria solução depois.

Chegou o tempo de depois? Digamos
que sim. E no entanto os nomes dados
não foram, nem um só, os que sonhamos.
Talvez porque sonhássemos errado,

talvez porque, enquanto alguns se davam
ao luxo de sonhar, outros, insones,
imunes, implacáveis, se entregavam
à tarefa prosaica de dar nomes

sem antes os sonhar. E, dia feito,
agora tudo é fácil. E por isso
difícil. Não, a coisa não tem jeito.
Nem nunca teve, aliás. Desde o início.
..........
MATERIAIS (DE LITURGIA DA MATÉRIA)

A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir.
A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça.

A utilidade do tempo:
o silêncio.
............
INSÔNIA

Na noite imperturbável,
infinitamente leve
a consciência se esbate,
espécie de semente
sobre um campo de neve
neve macia e negra
intensamente morna
onde o tempo se esquece
na inércia indiferente
das coisas que só dormem

onde, alheia ao mistério
de tudo ser evidente,
inteiramente encerrada
dentro do espaço exíguo
que é dado a uma semente

inútil como fruta
que não foi descascada
e apodreceu no pé,
jaz a semente aguda
profundamente acordada.
..............
POMO (DE MÍNIMA LÍRICA)

Da vida só têm substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.
Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.

É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.
..........
MADRIGAL

Desista: não vai dar certo.
O mundo é o mesmo de sempre,
desejo é uma coisa cega.
Desista, enquanto é tempo.

As mãos não sabem o que pegam,
os pés vão aonde não sabem.
As cartas estão marcadas:
vai dar desgraça na certa.

O mundo é sempre a esmo,
desejo é uma porta aberta.
Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.

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