quinta-feira, 31 de março de 2022

POEMAS de Laura Navarro

 

MATRYOSHKA

No dia do meu aniversário
Tu me deste uma dessas bonecas
Que eram várias
Dentro de uma
Como mãe e filha
Como alma e corpo
E, como eu,
tu disseste.

Elas sorriam, elas choravam
ao mesmo tempo
E conforme elas iam ganhando vida
Eu ia apodrecendo
Quem diria,
Uma boneca animando
humanos
Como uma menina brincando
de barbie?

Você sabe, eu guardava
As pétalas das rosas
que você me dava
dentro delas
Como se fossem vasos

E eu as carrego comigo
Como uma mãe que carrega
suas filhas
A diferença é que
A mãe é a matrioska, não eu

Aliás, se eu tivesse uma filha
Queria que essa boneca
fosse a parteira
assim como eu
em todos os partos dela

E que o cordão umbilical de minha menina
Fosse guardado dentro dela

E, quando eu morrer
Eu só peço
que a maior delas
seja enterrada comigo
E que coloquem as outras
Ao redor de meu túmulo
..........................
FLANEUR

Olho aos cantos de minha cidade
como se passasse a tempos anteriores
aos meus
e andasse em outros sapatos
cheiro de fuligem que me penetra
a chuva cai lentamente
mudando lentamente
os tons do céu dos prédios dos museus
de absolutamente
tudo
erupção sensorial
de cores dissonantes
que podem ser
tocadas
pelos meus
mocassins

DOS MEUS 67 ANOS EM DIANTE – Rafael Rocha

 

Do livro "Contos Delirantes com Versos em Bolero" - 2017
.............
Além do que pude ser gente tão jovem
buscando uma espaçonave na internet
para o voo interestelar entre planetas
com o Capitão Kirk no comando
da grandiosa nave Enterprise
tendo ao lado o orelhudo Spock
para me espelhar na sua lógica.

Dos meus 67 anos em diante
vou recordar coisas distantes e do antes
tentar atingir as nuvens
buscar sentir as paisagens
coisas de quando ainda
nem cabelos brancos tinha.
Histórias fantásticas
que ninguém escreveria.

Dos meus 67 anos do antes para o adiante
tentei até escrever num blog da internet
sobre quando ainda nem possuía
uma história de gente.
De quando ainda escrevia odes tímidas
dedicadas às papoulas vermelhas
da casa dos meus velhos pais
em um bairro proletário.

Dos meus 67 anos em diante a vir do antes
vejo a mulher dormindo nua
sem oferecer promessas certas
para usufruir a carne crua.
Faço do espaço do tempo sexagenário
em diante e mais adiante e adiante mais
o que possa caber de poemas sobre a lua
bebendo a minha cerveja
em algum bar da minha rua.

Além do que pude ser:
intelectual radical de mim
com amigos radicais de si
com tantos espaços limitados
para imaginar os efeitos
do que fazer dos meus 67 anos
em diante e adiante lembrando o antes.
Como bem disse Pessoa
“O poeta é um fingidor”...
Vamos fingir!

“Filhos, filhos, filhos
melhor não tê-los”, disse Vinicius.
“Mas se não os temos como sabê-los?”
Como sofrer por eles quando velhos?
E esperá-los quase inerte
olhando relógios nos espelhos
a pensar se eles e eu somos iguais
e de onde a vida lhes traz
vertiginosos perigos?

Dos meus 67 anos em diante
não pretendo dissertar coisas amáveis.
Eu não sei os anos da frente.
Sei os 67 anos de antes
e as aventuras loucas concebidas
sem permissão de ninguém.
Conhecendo a dama de vermelho.
Trepando com a dama de vermelho.
Amando a dama de vermelho
com o consentimento do amigo.

Dos meus 67 anos em diante
não poderei dissertar história alguma
mas dos 67 anos do antes
lembro dos meus aniversários e das festas
de quando a minha mãe
era a mulher mais bela
de quando o meu pai
era meu indiscutível herói
de quando meus irmãos eram destinos
afetivos e amorosos e amigos
a cada passo de cada um e ao passo de todos.

Saudades!
Eram carnavais que nos faziam a vida
ser a cada dia mais relampejante.
Eram bocas iguais à boca da Regina
aquela fantasia feita de primeiro amor
que só beijei em uma noite de folia
sob a marchinha da lua
cantada por Ângela Maria.

Saudades!
Eram fugitivos dias nas praias da cidade.
Doses de vodca com laranjas
(coisas especiais).
Saudades!
Eram toques das mãos da piniqueira Suely
antes de sermos profissionais de punheta
atacados por maruins nos canaviais.

Dos meus 67 anos para o agora em diante
melhor dissertar os anos distantes
faltam poucas coisas para ver o sol poente.
Mas ainda faço um brinde
encho meu copo com a mais espumosa cerveja
e grito: Evoé, Baco!
E o mundo ainda me responde!
Evoé! Evoé!

Dos meus 67 anos para o agora em diante
sentindo as recordações distantes
hoje posso morrer sem medo
e usufruir as coisas proibidas
e gritar bem alto e de bom som
para os idiotas acadêmicos:
- Vão tomar no cu! -

Dos meus 67 anos para o agora em diante
eu sou dono de toda a minha história.
Busco a sabedoria como um Lama!
Sou revolução como um Guevara!
E, simplesmente, sou um homem!
Ainda estou vivo!

Desce à Terra a nave Enterprise.
Nosso mundo não está perdido.
Eu estou no comando junto com meu amigo.
O mundo jamais vai se acabar!