segunda-feira, 7 de março de 2022

POEMAS de Rosa Alice Branco

 

PASSOS SEM MEMÓRIA

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.
....................
POR UM DIA DE INVERNO

O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã "peixe fresco
tão vivinho" e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária
de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem
do talho morreu cansado, mas agora está fresco:
foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.

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