segunda-feira, 7 de março de 2022

HAVIA SÓIS - Beatriz Bajo

 

entre os dedos escorregadios
eles se esparramavam
pelas camisetas brancas
das crianças pretas
respingadas de laranja nas beiradas…
laranja era a cor de seus sonhos
que traquinavam dentro da biblioteca
toda de vidro
chamada Carlos Drummond de Andrade
mas só conseguia lembrar-me de G. Ramos
e da purificação da escrita
uma biblioteca envolvida em vidro
incitava fantasias de transparência
toda aquela claridade…
quanta luz poderia atravessar o espaço?
naquela parte tão franca
pensava em sujar palavras
rasurá-las, cuspir nas palavras…
era bom vê-las manchadas de gente…
a palavra alaga
a palavra alastra
a palavra gasta
a palavra apaga
a palavra lavra
não interessava a palavra enxuta
mas pingada de caos
soprando assaz às asas do verbo
enquanto um passarinho pisava destro
sobre os galhos da árvore amarela
abria e desabria asas
quando é dia, desaba a palavra
enlaçada na agulha riscada pelo vinil antigo
quando é noite, ascende a palavra aberta
a palavra aberta sangra?
a palavra assassinada
há um vão em cada letra
no peito do poema
há uma palavra morta
lembro-me dos sorrisos esvoaçantes
sacudindo os olhinhos amanhecidos
de silêncio e nuvens pintadas
nos jardins dos instantes
dentro do alvoroço das idades
cintilavam vazios coloridos
há versos pretos no meio da rua
resvalados pelos passos da noite
há versos pretos no meio da noite?
há versos brancos no papel
esbaforidos de meio-dia
versos brancos caminham de dia?

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