I
Os mortos sentam-se à mesa,
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito.
Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.
Não devendo, embora lisas,
suas frontes, onde a brisa
tece uma tênue grinalda
de flores que não se explicam.
Nos beirais a lua afia
Seu florete de marfim.
(Sob as plumas de neblina
os mortos estão sorrindo:
um sorriso que, tão tíbio,
não deixa sequer vestígio
de seu traço quebradiço
na concha azul do vazio.)
Quem serão estes assíduos
mortos que não se extinguem?
De onde vêm? Por que retinem
sob o pó de meu olvido?
Que se revelem, definam
os motivos de sua vinda.
Ou então que me decifrem
seu desígnio: pergaminho.
Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios;
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se às despedidas.
Lembro alguns, talvez meninos,
que se foram por equívoco;
e outros mais, algo esquecidos
que de si mesmos se iam.
Mas estes, a que família
de mortos pertenceriam?
A que clã, se não os sinto
visíveis, tampouco extintos?
Ou quem sabe não seriam
mortos de morte, mas sim
de vida: imagens em ruínas
na memória adormecidas.
Mas eles, em seu ladino
concílio, disfarçam, fingem
não me ouvir. E seu enigma
(névoa) no ar oscila e brinca.
II
Ó mortos que, sem convite,
à minha mesa finita
sentastes só para urdir
tal intriga metafísica!
Quem vos pediu me despísseis
vosso segredo mais íntimo?
E, ao despi-lo, não me abrísseis
seu núcleo de morte e vida...
E por que tanto sigilo
em vosso verbo melífluo,
se a morte em si já é signo
transfigurado de vida,
se apenas um morto em mim
é o que basta de agonia
para que o tempo o redima
e logo inverta sua sina?
Assim, estes mortos (vivos)
não estão aqui nem ali:
pertencem todos à minha
carne, agora feita espírito.
E mesmo que se retirem
(e eis que o fazem, de mansinho)
algo deles, pelas frinchas
da noite cúmplice, fica.
E me invade, vago líquido,
tingindo fibra por fibra
o ser que em meu ser persiste
conta o outro, que o mastiga.
III
Sobre a mesa, sono e cinza,
dissolvem-se as iguarias
- viandas, aspargos, vinhos -
que ofereci às visitas.
Visitam porém omissas,
não cuidaram de comida,
aos da mesa preferindo
requintes talvez mais finos.
À cabeceira, sozinho,
a coisa alguma presido
senão a mim mesmo: abismo
que em si próprio se enraíza.
Quanto aos convivas - repito -,
de algum modo ainda me habitam;
não fosse assim, como ouvi-los,
agora, em meus labirintos?
Sim, ei-los meus inquilinos,
os mortos, tão coisa viva
que a morte já não os cinge:
deixa-os fluir, linfa, comigo.
Os mortos sentam-se à mesa,
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito.
Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.
Não devendo, embora lisas,
suas frontes, onde a brisa
tece uma tênue grinalda
de flores que não se explicam.
Nos beirais a lua afia
Seu florete de marfim.
(Sob as plumas de neblina
os mortos estão sorrindo:
um sorriso que, tão tíbio,
não deixa sequer vestígio
de seu traço quebradiço
na concha azul do vazio.)
Quem serão estes assíduos
mortos que não se extinguem?
De onde vêm? Por que retinem
sob o pó de meu olvido?
Que se revelem, definam
os motivos de sua vinda.
Ou então que me decifrem
seu desígnio: pergaminho.
Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios;
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se às despedidas.
Lembro alguns, talvez meninos,
que se foram por equívoco;
e outros mais, algo esquecidos
que de si mesmos se iam.
Mas estes, a que família
de mortos pertenceriam?
A que clã, se não os sinto
visíveis, tampouco extintos?
Ou quem sabe não seriam
mortos de morte, mas sim
de vida: imagens em ruínas
na memória adormecidas.
Mas eles, em seu ladino
concílio, disfarçam, fingem
não me ouvir. E seu enigma
(névoa) no ar oscila e brinca.
II
Ó mortos que, sem convite,
à minha mesa finita
sentastes só para urdir
tal intriga metafísica!
Quem vos pediu me despísseis
vosso segredo mais íntimo?
E, ao despi-lo, não me abrísseis
seu núcleo de morte e vida...
E por que tanto sigilo
em vosso verbo melífluo,
se a morte em si já é signo
transfigurado de vida,
se apenas um morto em mim
é o que basta de agonia
para que o tempo o redima
e logo inverta sua sina?
Assim, estes mortos (vivos)
não estão aqui nem ali:
pertencem todos à minha
carne, agora feita espírito.
E mesmo que se retirem
(e eis que o fazem, de mansinho)
algo deles, pelas frinchas
da noite cúmplice, fica.
E me invade, vago líquido,
tingindo fibra por fibra
o ser que em meu ser persiste
conta o outro, que o mastiga.
III
Sobre a mesa, sono e cinza,
dissolvem-se as iguarias
- viandas, aspargos, vinhos -
que ofereci às visitas.
Visitam porém omissas,
não cuidaram de comida,
aos da mesa preferindo
requintes talvez mais finos.
À cabeceira, sozinho,
a coisa alguma presido
senão a mim mesmo: abismo
que em si próprio se enraíza.
Quanto aos convivas - repito -,
de algum modo ainda me habitam;
não fosse assim, como ouvi-los,
agora, em meus labirintos?
Sim, ei-los meus inquilinos,
os mortos, tão coisa viva
que a morte já não os cinge:
deixa-os fluir, linfa, comigo.
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