quarta-feira, 29 de abril de 2020

A UMA MULHER AMADA – Safo

Tradução de Joaquim Brasil Fontes Júnior

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala…
eu quase morro…
eu tremo!

AS MÃOS – Manuel Alegre

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

PRISÃO – Rafael Rocha

Drummond escreveu um dia que
“O pássaro é livre na prisão do ar.
O espírito é livre na prisão do corpo”.

E agora eu vivo:
Na prisão fugindo de um perigo invisível
Tentando renovar meu tempo no tempo
Longe e muito longe dos amados
Irmãos, irmãs, amigas e amigos.

Grito ao monitor do notebook
Minha vontade de ser livre.
Sair dessa prisão e voar e voar
Voar meu corpo sobre as montanhas...
Mas não sou pássaro
E estou com medo do tempo...
Com medo das ruas...
Com medo do ar...

SE VOCÊ ME ESQUECER – Pablo Neruda

Tradução de Rafael Rocha

Se eu olhar para a lua cristalina,
para o galho avermelhado
do lento outono
pela minha janela.
Se eu tocar, próximo ao fogo,
a intocável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva a você,
Como se tudo o que existe:
perfumes, luz, metais,
fossem pequenos barcos
que navegam rumo às tuas ilhas
que esperam por mim.
Bem, agora,
se pouco a pouco
você deixar de me amar
eu deixarei de te amar,
pouco a pouco.
Se, de repente,
você me esquecer,
não me procure,
porque eu já terei te esquecido.
Se você pensa
que é longo e furioso
o vento que passa
pelas velas da minha vida
e decidir me deixar na praia do coração,
onde tenho raízes, lembre-se:
que nesse dia, nesta hora,
eu levantarei meus braços
e minhas raízes partirão
para buscar outra terra.
Mas, se a cada dia,
a cada hora,
você sentir que é destinada a mim,
com implacável doçura,
se a cada dia uma flor
]escalar os seus lábios
à minha procura,
Aahh meu amor,
aahh meu próprio eu,
em mim todo aquele fogo reacenderá,
em mim nada é extinto ou esquecido,
meu amor se alimenta do seu amor, amada.
E enquanto você viver,
estará você em seus braços,
sem deixar os meus...

quarta-feira, 22 de abril de 2020

FORTUNA FIEL - Gabriela Mistral

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
Uma assim como rosa,
a outra assim como espinho.
Não me prejudicou
o roubo que sofri.
Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
E estou rica de púrpura
e de melancolia.
Como é amada a rosa,
como é amante o espinho!
Tal num duplo contorno
frutas gémeas unidas,
tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.

UMA ARTE – Elizabeth Bishop

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

PASSAR - August Stramm

Tradução Augusto de Campos

A casa faísca nas estrelas
Meu passo para e esfria.
Em teu seio meu cérebro dorme.
Dúvidas me devoram!
Pleno
Teu busto faz sombra na janela
A espreita me cala
Estrelas roçam ferro em brasa
Meu coração
Carboniza!
Em tua janela
Gela
Cinza de brisa
Os pés arrastam um peso vazio!

terça-feira, 21 de abril de 2020

MEDIOCRIDADE – Jules Laforgue

Tradução de Régis Bonvicino

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o seu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.

QUANDO FORES BEM VELHA – Pierre de Ronsard


Tradução de Guilherme de Almeida

Quando fores bem velha, à noite, à luz da vela
Junto ao fogo do lar, dobrando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.

E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.

Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso:
E em tua casa irás, velhinha combalida,
 

Chorando o meu amor e o teu cruel desdém. 
Vive sem esperar pelo dia que vem; 
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida!

A CURVA DOS TEUS OLHOS – Paul Éluard

Tradução de Luísa Neto Jorge

A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.

FÁBULA OU HISTÓRIA – Victor Hugo

Tradução de Manuela Parreira da Silva

Um dia, magro e sentindo um real desfastio,
Um macaco com a pele de um tigre se vestiu.
O tigre fora malvado, ele tornou-se atroz
Ele tinha assumido o direito de ser feroz.
Arreganhava os dentes, gritando: eu serei
O herói dos matagais, da noite o temível rei!
Como malfeitor dos bosques, emboscado nos espinhos,
De horror, morte e rapinas, escureceu os caminhos,
Degolou os viajantes e devastou a floresta,
Fez tudo o que faz aquela pele funesta.
Vivia no seu antro, no meio da voragem.
Todos, vendo-lhe a pele, criam na personagem.
Gritava e rugia como as feras danadas:
Olhem, a minha caverna está cheia de ossadas;
Olhem para mim, sou um tigre! Tudo treme,
Diante de mim, tudo recua e emigra; tudo freme!
Temiam-no os animais, fugindo com grandes passos.
Um domador apareceu e tomando-o nos braços,
Rasgou-lhe a pele, como se rasga um farrapo,
E, pondo a nu o herói, disse:
- Não passas de um macaco!

domingo, 19 de abril de 2020

ÚLTIMA FESTA - Rafael Rocha


Se nasci em Olinda devo morrer em Olinda perto do mar
Em qualquer mês ou dia ou ano que ainda não sei quando
Mas espero morrer olhando para a cor de uma tarde olindense
Quando o forte cheiro de maresia emana das ondas do oceano.

Seja o funeral numa sexta-feira para os meus amigos beberem
E brindarem por essa minha passagem de retorno ao nada
Todos terão licença para cantar qualquer tipo de música
Pois o poeta agora é um insensível ao ódio e ao amor.

Possam gritar meu nome para os desesperados da terra
Dando-lhes razão e apoiando todos na loucura de cada um:
- Rafael Rocha está morto! Morreu mais um poeta!

E joguem líquidos cervejeiros sobre meu ataúde de madeira
E dancem e dancem todos os boleros e todos os tangos
  Pois o homem que fui voltou a ser átomo universal.

sábado, 18 de abril de 2020

PEDRA NEGRA PEDRA BRANCA - César Vallejo

Tradução de José Bento

Morrerei em Paris com aguaceiros
num dia de que já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris – daqui não saio –
numa quinta-feira, como hoje, de outono.

Quinta-feira será, pois hoje, quinta-feira,
em que estes versos proso, dei os úmeros
à pouca sorte, e nunca como hoje
voltei,com todo o meu caminho, a ver-me só.

Morreu César Vallejo, espancavam-no
todos sem que lhes fizesse nada;
davam-lhe forte com um pau e forte

com uma corda também; são testemunhos
as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, os caminhos, a chuva…

DEAMBULAÇÕES OBLÍQUAS - Antonio Ramos Rosa

É porque nos decepcionamos
que procuramos a perfeição
O símbolo é o arco que abarca a totalidade
e por ele nós podemos alcançar
o que está do outro lado dela
A transcendência do que não vemos
a outra face do todo
é uma perspectiva simbólica
inerente à imediata presença
da face que estamos vendo
Assim o que vemos e o que não vemos
no objecto que estamos olhando
é a coisa em si que o animal não apreende
Não somos nunca o que está diante e separado
o que representa e o representado
em separada oposição
de ideia e objecto
de consciência e corpo
O que em nós está separado
em espírito e em corpo
está ao mesmo tempo unido
numa tensão oblíqua
que nos insere no mundo
E como seres simbólicos
e como seres-no-mundo
somos o que já somos
somos o que ainda não somos