domingo, 25 de novembro de 2018

QUAL É O FIM… - Victor Hugo

Tradução de Manuela Parreira da Silva

Qual é o fim de tudo? a vida ou a tumba?
A onda que nos sustém? ou a que nos afunda?
Qual a longínqua meta de tanto passo cruzado?
É o berço que embala o homem ou é o seu fado?
Seremos aqui na terra, nas alegrias, nos ais,
Reis predestinados ou simples presas fatais?

Ó Senhor, responde, responde-nos, ó Deus forte,
Se condenaste o homem apenas à sua sorte,
Se já no presépio o calvário se anuncia
E se os ninhos sedosos, dourados pela manhã fria,
Onde as crias vêm ao mundo por entre flores,
São feitos para as aves ou para predadores.

E O TEU VESTIDO É BRANCO – Salvatore Quasimodo

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

Tens a cabeça baixa e me olhas:
e o teu vestido é branco,
e um seio aflora de entre as rendas
soltas do teu ombro esquerdo.

A luz me supera; treme,
e te toca os braços nus.

Revejo-te. Tinhas
palavras poucas e breves,
que punham alma
no peso de uma vida
que sabia a circo.

Profunda era a estrada
por onde o vento descia
certas noites de inverno,
e nos despertava estranhos
como na primeira vez.

A BELA TETA – Clément Marot

Tradução de David Mourão-Ferreira

Teta perfeita, branca como um ovo,
Teta de cetim feita, cetim novo,
Teta da qual a rosa tem vergonha,
Teta melhor que tudo o que se sonha,
Teta dura, nem teta, mas enfim

Comparável a bola de marfim,
E no centro da qual somente esteja
Um rubi de morango ou de cereja
Que ninguém vê nem toca por enquanto,
Mas que aposto ser tal como eu o canto:

Teta de bico pois tão encarnado
Que parece por agora sossegado,
Quer ela vá correndo ou vá andando,
Quer ela vá partindo ou vá saltando:
Teta do lado esquerdo, tão matreira,
Sempre longe da sua companheira,
Teta que és testemunha e viva imagem
De compostura tal da personagem
Que só de ver-te assim como te vejo
Nasce dentro das mãos este desejo
De toda te palpar e possuir:
Mas é preciso eu próprio me impedir
De mais me aproximar, pois não duvido
Depois desse desejo outro surgido…
Ó teta nem modesta nem vistosa,
Teta madura, teta apetitosa,
Teta que noite e dia ouço gritar:
“Depressa me casai, quero casar!”

Com justiça, feliz se vai dizer
Aquele que de leite te há-de encher,
Fazendo de uma teta de donzela
Teta de dona inteiramente bela.

ÓBOLOS – Anne Morrow Lindbergh

Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Como aos pássaros no inverno,
tu me alimentaste;
sabendo que a terra estava gelada,
sabendo que
eu jamais viria comer na tua mão,
sabendo que
não precisavas da minha gratidão.

Suavemente,
como caem os flocos de neve,
suavemente, para eu não me assustar,
suavemente,
atiraste as migalhas no chão –
e te afastaste.

PROFECIA – Alfred Tennyson

Tradução de José Lino Grünewald

Porque imergi no futuro,
até onde o olho humano pode ver,
Vislumbrei a Visão do mundo,
e todo o encanto que podia ser;
Vi os céus cheios
de naus, corsários, velas de magia,
Pilotos do crepúsculo
rubro tombando em cargas de valia;
Ouvi os céus cheios de gritos,
e lá choveu um lívido orvalhar
Das vistosas esquadras
das nações no azul central a atacar;
Bem longe, o murmurar no mundo inteiro
do vento sul nesse ímpeto que esquenta,
Com os emblemas dos povos
mergulhando nos raios da tormenta;
Até que o tambor de guerra
não soasse e bandeiras ao reverso
No Parlamento do homem,
Federação de todo este universo.
Lá o senso comum da maioria
suporta um febril reino em sobressalto,
E a benévola terra
dormirá envolta em norma universal.

SONETO 105 – William Shakespeare

Tradução de Emmanuel Santiago

Não se diga, do amor que tenho, idolatria,
Nem o amado qual ídolo se represente;
Minhas preces, canções, nada disso haveria,
Porém, não fosse ele, ele sempre, ele somente.
Gentil este amor hoje, gentil no futuro,
Imutável na sua excelência sublime,
E meu verso, que tão permanente afiguro,
Uma só coisa diz, todo o resto suprime.
Belo, bom, verdadeiro, eis aqui meu resumo,
Belo, bom, verdadeiro, em palavras sortidas;
Revezando esses três, meu engenho consumo,
Três conceitos em um, de extensões desmedidas.
Belo, bom, verdadeiro, os três eram distantes
Sem poderem se unir num ser único antes.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

TELA VERMELHA - Rafael Rocha

Com letras brancas conjugo versos vermelhos
cheios de formas tanto paz ou desvarios.
Apodero-me dos conceitos de outros conselhos
e no pincel mágico escrevo o rumor dos rios.

Ao sabor da vida pertencem velhas crenças
que destroem num átimo o verbo racional:
- São contos deístas cheios de subserviências
querendo destruir o meu voo de imortal.

O espaço fica mais rubro que no sol poente
e nele habita o anseio do velho penitente
de ver seu deus errante habitar em seu ser
para morrer e apagar o pecado reticente
e orar na luz vermelha pelo perdão ausente
aos que adoram sonhos sem nunca os ver.

HOJE – Marcelino Vespeira

O dia não foi meu
e tantos outros que o não são
erro no calendário
ou voluntária distracção

E os dias que foram meus
gestos de outros são
que se dão a quem os quer
nos dias que o não são

E da pressa de os perder
do cansaço de os contar
ganho vícios da noite
que me sabem perdurar

BIOGRAFIA EMOCIONAL DO POVO – Antonio de Cértima

I
Boca de alma que se enfeita
Em rezas, cantos de amor...
- Não há lira mais perfeita
Que a do povo, trovador.

Prantos tristes, emoções,
Choros de fogo e paixão,
Tudo ele anima em canções,
Nas cordas do coração.

Almas de noivas errantes,
No céu da alma a vibrar,
Ele celebra, em descantes,
Quando se põe a evocar...

É olhá-lo: no modo triste
Há expressões traduzindo
Quanto bem que não existe,
Quanto mal que ainda é lindo!

O olhar tem certa beleza
Que entristece e dói... Assim
Deve ter sida a tristeza
Das faces de Bernardim!

Menina e Moça inda pura,
Perdida por seu encanto,
É a noiva que ele procura,
O Encoberto do seu pranto!

Só o povo português
Tem a intuição acertada
Que acorda no montanhês
Visões de vida passada.

Ecos de longe. Montanhas.
Contendas bravas, velhinhas.
E chamam por mães estranhas:
- Senhoras, Donas, Rainhas!

Donde virá tal nobreza?
De que grau de geração?
- É que a gente portuguesa
Tem sangue de condição.

Vem o. sol - cresta-lhe as veias:
E, em delírio, perde o tacto.
Busca a dança - ardem-lhe: as veias:
É o pulso de Viriato!

II
O povo humilde a cantar
Abre em doçura de asceta.
Sai à rua, está luar,
Solta uma queixa, - é poeta.

Nos seus poemas, corados
Nos vergéis, em tardes belas,
Espreitam lábios rosados,
Olhos garços de donzelas.

É a gente esquecer-se a ler
Tal poema sempre novo
E encontrar uma mulher
Em cada trova do povo.

Ingénuas virgens que passam,
Serenas, de passo mudo,
Levam bocas que se enlaçam
Noutras bocas de veludo.

Umas, de rostos de rosas
Frias, brancas, já mortais;
Outras em cores melindrosas
De céus espirituais.

E todas tão delicadas,
Tão cheias de puro encanto
Como a cinzel bem talhadas
De um génio que fosse um santo!

São Marias da inocência,
Da graça nata e servida;
Corpos de nívea fulgência
Sem a mancha própria da vida.

Outras, Ofélias doridas
De quanto amor desgraçado!
Tendo ainda as rosas caídas
Sobre o manto de noivado.

E todas passam e lá vão
Na luz do sol ou luar...
- Venturoso o coração
Do povo que sabe amar!

COMO SE FOSSES O MAR – Albano Martins

(Do livro Escrito a vermelho, 1999)

Antigamente
era assim: bastava
o voo duma ave
para te arrepiar a pele. Agora
os navios cortam
a linha de água e nem
um leve sobressalto
te percorre os rins.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

CANÇÃO PARA UMA NOITE DE LUAR - Edmondo Jabès

Tradução de Mário Laranjeira

Tu deslocas as ruas.
A cidade é um labirinto.
Sempre acabo em tua rua.

Tu mudas de nome.
Os dias são meus degraus.
Tua janela é tão alta.

Perco-te de vista.
À tua porta, um ladrão
ataca a fechadura.

Circundas meus sonhos.
Escapas à terra,
Ao inverno, às lágrimas.

A CARTA - Marina Tsvetaeva

Tradução de Augusto de Campos

Assim não se esperam cartas.
Assim se espera - a carta.
Pedaço de papel
Com uma borda
De cola. Dentro - uma palavra
Apenas. Isto é tudo.
Assim não se espera o bem.
Assim se espera - o fim:
Salva de soldados,
No peito - três quartos
De chumbo. Céu vermelho.
E só. Isto é tudo.
Felicidade? E a idade?
A flor - floriu.
Quadrado do pátio:
Bocas de fuzil.
(Quadrado da carta:
Tinta, tanto!)
Para o sono da morte
Viver é bastante.
Quadrado da carta.

CALMA E SILÊNCIO - Georg Trakl

Tradução de Cláudia Cavalcante

Pastores enterraram o sol na floresta nua.
Um pescador puxou a lua
Do lago gelado em áspera rede.

No cristal azul
Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;
Ou curva a cabeça em sono purpúreo.

Mas sempre comove o vôo negro dos pássaros
Ao observador, santidade de flores azuis.
O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.

De novo a fronte anoitece em pedra lunar;
Um rapaz irradiante
Surge a irmã em outono e negra decomposição.

sábado, 10 de novembro de 2018

CRÍTICA DA POESIA – Vasko Popa


Tradução de Aleksandar Jovanovic

Depois da leitura de poemas
No serão literário da fábrica
Começa o diálogo

Um ouvinte ruivo
De face marcada por manchas solares
Ergue dois dedos

Camaradas poetas

Se eu lhes versificasse
Toda a minha vida
O papel ficaria rubro

E pegaria fogo


UMA PEDRA - Yves Bonnefoy

Tradução de Mário Laranjeira

Tenho sempre fome desse
Lugar que nos foi espelho,
Das frutas curvadas dentro
De sua água, luz que salva,

E gravarei sobre a pedra
Lembrança de que brilhou
Um círculo, fogo ermo.
Acima é rápido o céu

Como ao voto a pedra é fechada.
Que buscávamos? Talvez
Nada, a paixão só é sonho.
Nada pedem suas mãos.

E de quem amou uma imagem,
Por mais que o olhar deseje,
Fica a voz sempre partida,
É a palavra toda cinzas.