quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CANÇÃO - Robert Creeley

Tradução de Régis Bonvicino

O que no corpo você esqueceu
e que deixou de lado
e que você não quer —
ou o que no corpo, você quer
e morreria por —
e pensa que isso basta —
se a vida é uma forma a ser esquecida
já que você partiu e sem remorso,
ninguém existe, no que você foi —
Este lugar vazio é tudo que há,
e/se o rosto é lembrado,
ou cão late, o leite do gato.

NÃO POSSO ESCREVER DE TI - Jacques Roubaud

Tradução de Inês Oseki-Dépré

Não posso escrever de ti mais veridicamente do que tu mesma.

Não que eu seja incapaz por natureza, mas a verdade de ti, tu a escreveste.

E porque escrevias para só seres lida morta, porque eu a li, tu morta, e feita minha, esta verdade é a mais forte de todas.

Não poderei ultrapassá-la.

O que detenho de ti, o que me concerne a mim só, não é da ordem da verdade mas da física:

Tocar desde os joelhos até a fronte, gosto de cerveja na língua, perfume nos braços, embaixo, visão e voz, de longe, me queimam : circuitos que não serão obliterados, não por enquanto.

Isso é só meu, e com razão.

Não escreverei de ti senão minha própria altura.

Ou então deito-me e faço sombra.

O VELHO - Paul Van Ostaijen

Tradução de Philippe Humblé

Um velho na rua
sua pequena história para a velha
não é nada soa como uma tragédia rarefeita
sua voz é branca
parece uma faca tão longamente afiada
até o aço ficar magro
como um objeto fora dele se pendura esta voz
sobre o preto comprido casado
O velho magro em seu casaco preto
parece uma planta preta
Vê você isto joga a angústia por sua boca
o primeiro saborear de uma narcose

CONFISSÃO À SÉRIO - Lawrence Ferlinghetti

Tradução de Isabelle Lima.

Fui concebido no verão I9I8
(ou era 38)
durante uma guerra qualquer
o que não impediu duas pessoas
de fazer amor em Ossining esse ano
gosto de imaginar isso ao sol nas margens dum rio
durante um piquenique ao pé do Hudson
como num quadro da escola de Hudson
ou então no Bear Mountain talvez
depois de ter apanhado o antigo paddlewheel a vapor
(talvez tenha acrescentado o paddlewheel —
O Hudson é o meu Mississipi).
E de regresso ela
trazia-me já
dentro dela eu
Lawrence Ferlinghetti
arrancado da obscuridade de minha mãe há muito tempo
nascido num pequeno quarto —
No quarto do lado meu irmão ouviu
o primeiro grito muitos anos depois escreveu-me
– "coitadinha da mãe – sem marido –
sem dinheiro – pai morto Como aguentou ela tudo isso —"
Alguém me espremeu o coração
para a por a andar
Gritei e saltei
Olho aberto Coração aberto a mais
onde vagueio
Gritei e saltei
no coração do mundo
Levado
por um outro que desconhecia
E qual eu conhecerá meu irmão?
"Sou filho de mim mesmo sou minha mãe, meu pai,
Nascido de mim próprio
minha própria carne mamada"
E alguém me espremeu o coração
para me por a andar
E pus-me a fazer
o meu número
Era um brinquedo de dar corda
que alguém deixou cair
num mundo já gasto
O mundo girava já
há muito tempo mas não fazia diferença
estava novo estava como novo
tornei-o novo
e vi-o brilhar
e brilhava ao sol
e girava ao sol
e o eixo que fiava
era de pura luz
Minha vida estava feita
de eixos de luz
As teias d’aranha da Noite
não estavam nela
não faziam parte dela
Era demasiado brilhante
de ver
demasiado luminoso
para fazer uma sombra
e havia um outro mundo
por detrás das cortinas brilhantes
bastava fechar os olhos
para que outro mundo surgisse
tão perto e tão querido
que só podia ser eu mesmo
meu eu interior
onde tudo o que é real
havia de acontecer
neste lugar que existe ainda
em mim
e que não mudou muito
certamente menos
que o exterior
com seu saco de pele
e sua "barba d’alumínio"
e seus olhos azuis azuis
que veem como um só olho
no meio da testa
onde tudo acontece
salvo o que acontece
no coração
vajra lótus coração de diamante
no qual leio
o poema que não tem fim

A ENCANTAÇÃO PELO RISO - Velimir Khlébnikov

Tradução de Haroldo de Campos

Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos - risadas de sorrideiros risores!
Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
Sorrisonhos, risonhos,
Sorride, ridiculai, risando, risantes,
Hilariando, riando,
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!

O LIMITE DIÁFANO - Sebastião Alba

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

A CANÇÃO DO ESTRANGEIRO – Edmondo Jabès

Tradução de Caio Meira

Estou à procura
de um homem que não conheço,
que nunca foi tão eu mesmo
quanto desde que comecei a procurá-lo.
Teria ele meus olhos, minhas mãos
e todos esses pensamentos semelhantes
aos destroços deste tempo?
Estação de mil naufrágios,
o mar deixa de ser mar,
para tornar água gelada dos túmulos.
Mas, mais longe, quem sabe mais longe?
Uma menina canta a contragosto,
enquanto a noite reina sobre as árvores,
pastora em meio a seus carneiros.
Venham arrebatar do grão de sal a sede
que nenhuma bebida poderá mitigar.
Com as pedras, um mundo se devora
para ser, como eu, de parte alguma.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A ARTE DE PERDER – Elizabeth Bishop

Tradução de Paulo Henriques Britto

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

POLÍTICO – Alberto Acosta-Peréz

Mestre do equilíbrio
te observo na tela
escuto tuas propostas de promessas vazias
e penso que existem palavras demais no mundo
sempre me dizes o velho equívoco
- levanta-te e anda!

AGONIA - Javier Iglesias

Tradução do autor

Letras que preenchem
a pobreza desta existência,
fenecidas pelos golpes.
Palavras que brotam
detrás do peito
como lágrimas de impotência.
Branco papel que desafia
cada amanhecer de agonia.
Ideias que se derrubam,
mapas mudando de cor,
muros que caíram
como souvenirs de um símbolo.
Mulher que não alcança
para limpar a alma,
não importa, amor,
a luta está
entre uma palavra de ordem, e você.

CONTRA-AJUDA – Helena Ortiz

dias sem paixão
partículas do tempo a escorrer
luz quando é luz
sereno quando escuro
vão-se em minúcias os dias corridos
deixo que passem, ociosos
gasto-os, esbanjo-os,
desperdiço o que me cabe
e não espero nada
a cada momento

ASAS – Fernanda de Castro

Eu tenho asas!
Piso o chão como pisa toda a gente
mas tenho asas
de impalpável tecido transparente,
feitas de pó de estrelas e de flores.
Asas que ninguém vê, que ninguém sente,
asas de todas as cores.

Pequenas asas brancas que me afastam
das coisas triviais
e as tornam leves, fluidas, irreais
- pólen, nuvem, luar, constelações,
irisados cristais.
Asa branca minha alma a palpitar,
bater de asas o doce ciciar
de pálpebras e cílios.
Ó minhas asas brancas de cetim!
Revoadas de pássaros meus sonhos,
Meus desejos sem fim!

NADA SERÁ JOGADO NO VAZIO – Daniel Lima

Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.

Nem mesmo-o gesto inútil,
pois-que é gesto.

Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.

Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.

E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe.

CONDESCENDÊNCIA INICIAL – Bruna Piantino

semelhante à palha verde
um pequeno
louva-a-deus no verticilo
protuberante do milho
conheceu
da alameda ao quarto vazio
hipnotizado pela escadaria
que absorve
o bálsamo da cozinha

no ímpeto da força de
propulsão
esticou as esguias patinhas
o corpo assustadoramente
exato
os olhos esbugalhados
ultrapassavam o campo
de visão
acima de qualquer êxito

ao tentar me aproximar
devagar
sentiu-se acuado
mostrando olhar
receoso
de bicho cabisbaixo
fixado em lembranças
regressas
de vidas predadoras