segunda-feira, 29 de julho de 2019

A MÃO - Conceição Lima

Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.

Não seja tua lágrima a maldição
que sequestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia

girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.

SONETO RURAL – Florisvaldo Mattos

À precipitação do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.

Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.

Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.

Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.

NU - Adair Carvalhais Júnior

a poeira se esgueira
no pôr do sol por trás
da lua
minguante

um poema se perde
nas cintilações do dia

a solidão se
enreda na chuva
fina na transparência
da lágrima

o silêncio vibra nas
fontes do teu corpo sob
as dobras da tua
pele

um poema amanhece
nas cintilações dos teus
olhos

POEMA SOBRE ARAMES - Ronaldo Costa Fernandes

Há mãos farpadas
que não ouso tocar
assim como algumas
barbas que é o ódio
que escorre
das comissuras da boca.

Há lençóis de arame farpado
na cama de dois
que não são mais um.

Oh coleção de línguas
que ao lamber a carne
abrem feridas.

Já o arame dos teus olhos
são farpas que nada cercam.
Tuas cercas, até mesmo tuas cercas,
são mais vivas que as minhas.

Farpada é minha mente
que me fere quando penso
o que pensar não deveria.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

DOIS TRECHOS DE FRANCIS PONGE

Tradução de Júlio Castañon Guimarães

O INSIGNIFICANTE
O que há de mais atrativo que o azul, a não ser uma nuvem, na dócil claridade?
Por isso prefiro ao silêncio uma teoria qualquer e, mais ainda, a uma página branca um escrito quando passa por insignificante.
É todo meu exercício e meu suspiro higiênico.
......................................
A PAISAGEM
O horizonte, sobrelinhado com acentos vaporosos, parece escrito em pequenos caracteres, com tinta mais ou menos pálida segundo os jogos de luz.
Do que está mais próximo, não usufruo mais do que como de um quadro,
Do que está ainda mais próximo, do que como de esculturas, ou arquiteturas,
A seguir, da própria realidade das coisas a meus pés, como de alimentos, com uma sensação de verdadeira indigestão,
Até que finalmente em meu corpo tudo se engolfa e levanta vôo pela cabeça, como que por chaminé que desembocasse em pleno céu.

NINGUÉM MEU AMOR – Sebastião Alba

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.

AMOR - Robert Creeley

Tradução de  Régis Bonvicino

Há palavras voluptuosas
como carne
em sua umidade,
seu calor.

Tangíveis, dizem
o ânimo,
o alívio,
de ser humano.

Não falar delas
torna todo
o desejo abstrato
e sua morte ao cabo.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

APAGA-ME OS OLHOS - Rainer Maria Rilke

Tradução de Paulo Quintela

Apaga-me os olhos: inda posso ver-te,
tranca-me os ouvidos: inda posso ouvir-te,
e sem pés posso inda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os braços, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá
e se me deitares fogo ao cérebro
hei-de continuar a trazer-te no sangue.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

QUERO SER TAMBOR - José João Craveirinha

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

MISCIGENAÇÃO – Domício Proença Filho

Inexorável
a libido incendiada
escreve a letra
isenta:
inunda
chão de senzala
e lençóis de casa grande
e pátria regada a sangue
de cores variegadas
democratiza o percurso
e emerge um povo macamba
pesar de todas as penas
negras, cafuzas, índias e mulatas
Eros moreniza
a terra inaugurada
e a carne apaga o verbo
de cronistas assustados
as penas tremem
excitadas
véspera do novo
esterco
de canteiros falsos.

A vida nega o discurso
dos sacerdotes de Cronos.

Eros, um sorriso
enigmático.

CANTO DA MADRUGADA – Valdeci Ferraz

Do livro inédito “Terra dos Homens Clonados”
................................
Eis-me cercado por sombras e fotos antigas
dentro de uma madrugada insolúvel.
De um lado o desejo e do outro a tristeza
de ver o fogo apagado, a chama extinta,
a porta fechada, o beijo negado.
As recordações fuçam como ratos famintos.
Alguns conseguem furar meu crânio
e devoram parte da minha existência.
Do que eu sou a madrugada consome.
O que resta? Talvez um homem.
Extraio do peito um veneno atroz
na intenção de calar um desejo torto.
Mas a cada vez que ouço a voz
sussurra-me do além a voz de um morto.

Cerrou a madrugada a sua madre
para que nenhum verso fertilizasse a musa
e nenhum poeta manifestasse a sua dor.
Esqueceu que às palavras
é dado o poder da imortalidade
e aos poetas o sentimento do amor.
Eis-me cercado por antigos troféus
e modorrentas criaturas
que seguram a madrugada
com guardanapos de seda
transformando-a em uma grande sepultura.
Alude a alma ao canto sereno
da última estrela que morreu.
Prepara a cama com lençol vermelho
para que o canto do galo
sepulte de vez na manhã
esta madrugada doída.

terça-feira, 9 de julho de 2019

O FINGIMENTO DA ARTE – Genésio Linhares

Será que tudo na vida é fingimento
Ou haverá no mundo um pouco de verdade?
Talvez no cético haja sinceridade
Ao duvidar do próprio conhecimento

E no áureo idealismo o puro pensamento
Conquistou a essência da profundidade
Ou se perdeu na abstrata idealidade
E o inatingível de Kant ainda é um tormento?

Porém, o que professam as religiões
Com seus aparatos de simbologia
Ao velar mais que desvendar o mistério?

Ah! Como prefiro a arte e suas ilusões
Pois se finge verdade um mundo em magia
Sempre é fiel a este ofício e ministério.

QUANDO CHEGAR O DERRADEIRO DIA – Olímpio Bonald Neto


Necrófobo que sou, a Morte engano
Amando mais a Vida e a ti, Amor.
Que, assim, vou adiando, a cada ano,
A Pena Capital do pecador.

E quando, Amada, eu te deixar, um dia
E, a Sós, fizer a última viagem
Pelos campos azuis da Poesia
Recorda-te de mim feito miragem

Da Natura moldando a minha vida
Com o destino final do transgressor
Que deixará de herança o próprio Amor.

E disto viveras, agradecida
Ao preservar em mim todo o Mistério 
Que levarás de nós ao Cemitério...

GENEALOGIA – Maria Helena Latini

O tempo se embrenhou
em raízes
na terra úmida
húmus e gens
desconhecida escuridão
numa dança
de rodopios lentos
de tramas, tranças,
caracteres, traços, gestos,
jeitos, rostos, gostos,
elos e ecos
avôs - vós - vós
avós - vós - vós - vós
vozes e vozes
no burburinho inaudível
de estranhas entranhas.
Passado longínquo.

LUX – Beatriz Bajo

um homem constrói sua mulher
pela beira de si, pilares
altares de singelezas
arquitetados de aleluias
por milênios dentro
dos momentos
acende colunas e
tonifica músculos
no peito aberto
para o sempre
inventa hélices
alianças
amálgamas
assim
eternamente
apalavrados
— no franco
caminho
de seus corpos —
despertam a linguagem
intraverbal
que os ultrapassa:
“nós
nos
vivemos”

SE – Dulce Gracia Alonso Moron

Se a folha é filha,
a terra é seiva
em qualquer ilha.

Se o ramo é norte,
o vento é brisa
que o faz mais forte.

Se a tempestade é cega,
a lágrima é chuva
que a alma rega.

Se a florada é brinde,
a primavera é ânsia
de que o amor não finde.

GOSTO PARNASIANO – Gastão Torres

Agosto, mês das árvores despidas;
Os ventos, entre as moitas eriçadas,
Revelam um clamor de suicidas
E a contrição das almas condenadas.

Um funeral de folhas ressequidas
Desprende-se das últimas ramadas;
Contrasta no fulgor das avenidas
A solidão das noites prolongadas.

Definham os narcisos impotentes,
Crispando as longas pétalas dormentes
Na convulsão das flores moribundas.

Paisagem incolor de sóis fugazes,
Sem os matizes e os clarões vivazes
Das estações alegres e fecundas.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

CORPOS NOSSOS - Raimundo de Moraes

Corpos nossos
que estão arfantes
sacrificados sejam os vossos gozos
Venham a nós
os vossos prazeres
Sejam feitos
os nossos desejos
aqui no leito
ou lá no chão
O orgasmo nosso
de cada dia
nos deem hoje
perdoem as nossas fraquezas
como nós perdoamos
a quem não tem fornicado
e livrai-nos de todos os maus amantes
Amém

MORRER NA MADRUGADA – Jofre Rocha

se morrer na madrugada
não me acordem

deixem-me dormir o sono calmo
de quem sonhando
levou a vida

se morrer na madrugada
meus amigos
meus inimigos

não busquem misteriosas causas
não inventem histórias
de Santas e kimbandas

sepultem-me
no pico do monte mais agreste
na raiz
do mais doido vento
sem batuque nem komba
sem pranto ou espanto
sem canjica nem carpideiras
sem dor nem quebranto

deixem-me dormir o meu sono

se morrer na madrugada
peço, não me acordem
deixem as estrelas contaminar-se
na magia do meu sono