segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

BLANDINA - Mafalda Sofia Gomes

Tão bela! Que bela, que bela
é a toada que ouço agora
na vez em que vou morrer.

A multidão ferve e é hora:
bramas se me dobro já
sobre o escuro, teu corpo
de boi fogo e meu colosso.

Sobre o escuro teu dorso
de boi, breu fulvo, teu contorno,
curvo-me cativa e cumpro-me
pesada e côncava sobre o pó.

São fardo teu trono, meus seios,
enquanto bramimos; afinal
sou bicho e tanto como tu
na vez em que vou morrer.

Ergo-me ampla e abro-me
à fome, meu altar e tua arte
na vez em que vou morrer:
a multidão ferve e é hora.

Estendo-me larga e fendo-me
doida, densa açucena pousada,
planície inteira como se exposto
meu lombo, como se a escutasse

tão bela! que bela que bela
na vez em que vou morrer:
a multidão ferve e é hora

FIGURAS DE MANEJO DA MEMÓRIA – Lucas Perito


Busco um rosto retirado de duas mãos
Se completam e desfazem
São cavalos sobre o sal da terra
– Silenciam.
Persigo um rosto e pertence à noite
Em ruínas que só as raposas conhecem.

Uma lanterna aponta, em um quarto – unidas –
Vozes úmidas conjuram os nomes de origem
Em algum lugar do espaço
Correspondem-se, sem razão,
Duas feridas e um fruto mordido.

VOCÊ CONFUNDE O AMOR COM UMA PÉROLA – Júlia Raiz


o poeta na parede
com um tiro na testa
também sabia seu nome
sabia da constância do topo nevado
mesmo no calor do seu pescoço
ele podia ter fugido pelo mar
em vez de conviver
com seus impulsos violentos

a destruição minando
de cada contraparte

ele teria gostado de te socar a cara
como um jaguar
saindo da água quente
eu não me importo mais
com o tamanho do corte
não quero mais seguir mergulhando
odeio você
e a sua cidade aquática
só amo o lorca

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

CONSTATAÇÃO – Simão Pessoa


Tudo temos feito todos:
palavra e afeto afago
de ninar em nicho raro
(e nada fez efeito feito)

todos temos feito tudo:
missa no portal portas
de falar das favas mortas
(e nada fez sentido sido)

de tudo temos sido todos:
amigos de fé e coragem
no fel febril da cidade
(e nada melhorou nada)

de todos temos tudo sido:
trigueiro mear de peão paneiro
prenhe de pão
(e de tanto dar-se, nada deu-se...)

FAVELA – Raul Bopp

Meio-dia.

O morro coxo cochila.
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.

Um pé de meia faz exercícios no arame.

Vizinha da frente grita no quintal:
- João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora.
Mamoeiros estão de papo inchado.

Negra acocorou-se a um canto do terreiro.
Pôs as galinhas em escândalo.

Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.

À porta da venda
negro bocejou como um túnel.

ESCULTURA – Raimundo Gadelha


Mutilados os braços,
os pés tentarão, passo a passo,
imprimir uma emoção
Decepadas as pernas,
o caminho não terá sido em vão
Cortada a cabeça,
por instantes ainda pulsará o coração
e enterrado o coração e todo o resto
restará ainda e para sempre
a marca cósmica e imperecível
de tudo o que se tentou ser
E numa fração de segundo
o Ser simplesmente será
Puro
Rápido
Eterno.

NO RELEVO INDIGNO DA MINHA LÁPIDE – Carvaho Júnior

se eu tenho um chão
desses para os quais se inventam
hinos e outras pompas de maldizer,
fica abaixo da cintura de uma flor de cemitério
dos entrenós feridos
em que as borboletas acrobatas se distraem
nas manhãs de visita aos mortos desconhecidos.

quando a caçula da família destroça a cabeça
do último bailarino sem sombra
e rasga com vidro sujo de sangue
o corpo sem tinta da flor,

lê no relevo indigno da minha lápide:
nunca nasceu tal como a sua pátria.

NASCIMENTO – Lya Luft

Viver é a cada dia
partejar a vida.
Que esforço, que dor,
que tempo de espera.
Ela pode nascer com muitos braços
cabeça grande demais
(- às vezes sem pernas).
Abro meu ventre,
minha alma se arreganha
como uma parturiente:
dar à luz dói.
Faço isso todos os dias,
como num palco:
aquele bonequinho
sou eu
num mundo que vou montando.

Mas nem tudo me assusta,
nem tudo me prende:
posso abrir algumas portas,
posso fechar outras,
posso escolher o sexo
e a cor dos olhos de cada momento.

INSÔNIA - Basilina Pereira

De repente, é madrugada.
O galo canta macio
e o coração não diz nada.
O sono se perdeu no vazio

das promessas que ouvi
e cansei de catalogar no infinito
de minhas certezas pueris.
Já não sei em que acredito,

sigo debatendo-me no porto
onde todas as embarcações dormem
e só eu fujo do ponto cego da noite,

de onde escorrem meus cabelos soltos,
como caídos de nuvens disformes
à espera de que o sono volte.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

PROCESSO FINAL - Rafael Rocha


Quando nossos poentes avermelharem céus...
Quando as paixões adormecerem frias...
Eis o processo final!
Das tantas vezes em que tentamos dormir
impedidos pela adrenalina do amor...
Eis o processo da última vertigem!

Não mais tentativas de sedução às rosas!
Não mais tratativas de colar os corpos!
Hoje dormimos, dormimos!
A sede de viver permanece ativa
e geme medrosa de se perder nas noites!
Eu escuto! Escutas! Escutamos!

Apenas tratativas de nãos e fugas!
Pensamentos partindo em revoada!
Anoitece! Anoitece! Anoitece!
Eis o processo final de nossas auroras!
Eis o processo final de nossas tardes!
Eis o processo final das nossas noites!

A paixão morreu!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

SILÊNCIO - Gilberto Nogueira de Oliveira

Ando pelo deserto, ouço a tempestade.
Ando pela rua, passa um trator.
Ando pelo campo, ouço a covardia.
Ando pela periferia, ouço lamentos chorosos.
Ando pelas capitais, ouço discursos incultos.
Ando dentro de mim, ouço a minha tristeza,
Miséria, confusão. E o meu ser, é o meu eu.
Parei de andar. Olhei para o cemitério
Tinha gente chorando pelos mortos.

EVANGELHO - Leandro Angonese

Não acredito
Em Deus
Nem no diabo
Que o homem veio do barro
Do paraíso prometido
Nem no fogo da geena
Não acredito
No amor absoluto
Na instituição do casamento
Nos ditos sacramentos
Nos homens e seus rituais
Nos tratados de paz
Não acredito
No coringa no jogo de baralho
No poder do adversário
Na umidade do orvalho
Não acredito
Nas visões da bola de cristal
Na profecia de Nostradamus
Na amizade entre os sexos
Ho gozo das prostitutas
No feitiço das bruxas
Não acredito
Na santidade do papa
Nas lidas da Sagrada Escritura
Na magia dos xamãs
Na maldição do faraó
Na passagem do mar vermelho
No meu reflexo no espelho

REDIVIVO – Esmeraldo Homem Siqueira

Nenhum de vós me conhece.
Já morri muitas vezes!
O que vedes em mim,
Depois de tantas mortes sucessivas,
Não sou eu, mas o egresso de mim mesmo,
Por milagre extraordinário
Da vontade consciente de viver.
Rebentei, uma a uma, as paredes do túmulo
Onde haviam tentado sepultar-me,
E apareci ao sol, completamente outro,
Reafirmando aos brados
O desejo de ser.

Minhas ressurreições passaram despercebidas
E ninguém duvidou de que eu fosse eu mesmo.
Não vi como nem para que provar
Aos cegos de nascença a existência da luz.
Meus amigos, eu trouxera do berço
Os estigmas negros do infortúnio.
- "Hás-de ser infeliz! hás-de ser infeliz!" -
Foi o refrão que ouvi durante anos e anos.
E realmente, fui um réprobo da sorte.

Vieram não sei de onde algozes misteriosos,
Arautos de sinistras potestades,
Cada um com seu suplício original.
Havia três bilhões e meio de outras almas
E era tão grande a terra!
Por que seria eu o eleito supremo,
Justamente eu, meus amigos?
Devo calar em meu próprio respeito.
Por mais que vos falasse,
Não teríeis tempo de entender-me.
Gritarei, apesar de tudo,
A plenos pulmões e em tom desafiador:
- Eu sou o liberto! eu sou o liberto!