segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O ELO – Daniel Cosme

 

Levo uma paixão no bolso,
Este tão leve clero
De anjos, ninfas, como ouros
Tidos só em mãos de ferro.

A levo assim tão cauteloso,
E no mesmo esmero
De na sina tirar dos poços
Outras musas e mistérios!

A levo, então, pra outro século,
Cruzando todo fogo
E a repulsa do que é eterno,
E a quem diz "O sonho é louco".

E levando-a pelo deserto,
E por mares longos,
A deixo ver já bem de perto
O elo em que tudo é pouco.

Uma disse-me em tom sério:

“Tudo neste mundo é belo!
Até o esterco num novo corpo.”

Tão logo viram artistas tortos
Marcharem mortos - magote débil!
E outra falou-me em seu desgosto:

“Nem tudo, então, parece certo…
Há pouca vida pra tanto voo…
Há pouco espírito pra tanto corpo…"

E ali ficamos. E veio o Inferno.
E dali partimos. E o magote - débil.

DESDE QUANDO? - Fiama Hasse Pais Brandão

 

Os dois vultos encaminham-se hoje
para o pinhal. Entram
na cancela delineada. Será possível
saber qual a parte do Todo ou sinédoque
verdadeira. Transposta a cancela
o primeiro desejo de ambos
é escolher a clareira. Veem pedras
espelhadas, várias flores miríficas
como as candeias rasteiras
com a sua coifa arroxeada e o pavio branco
estranho. Olham toda a periferia
para recompilar as árvores que os rodeiam.
Num manso pinheiro próximo
podem arrancar o córtex
já seco e solto.
Entalhadeiras
de pequenos artefatos, vasilhas e baixela
miniatural, cor castanho poroso e de leveza
surpreendente. O ofício diário industrioso
torná-las-á figuras móveis
do microcosmos. Cada uma traz uma navalha,
e a mais experiente entalhadeira ensina
a indústria matinal
à mais nova praticante da metafísica.
Depois, todas essas manhãs se juntam
numa cadeia de elos semelhantes.

domingo, 30 de janeiro de 2022

NOTÍCIAS DO BLOQUEIO – Egito Gonçalves

 

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
e segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os viveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.