sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A CANTORA DO METRÔ - Amy Clampitt

 

Tradução de Denise Emmer
......
Sobrevivente e desolada
figura pública - macilenta
desde que, com sua bengala, acordeão
e pires, eu a vi pela última vez

tateando seu duro caminho
como se numa íngreme montanha estivesse
abismos de um trem do metrô
onde escutei o seu contralto rascante

a sua voz soava vacilante
acima do burburinho popular
no constrangimento alienante
do rebanho ao tênue sinal

era tudo quase inaudível
o que chegava
de um promontório pálido
das cavidades frias de sua face
às nebulosas
de sua cegueira extrema
vista agora esperando
na plataforma,
como se no intervalo
entre dois recitais tão absurdos
aquela figura encolhida,
mas presente
que reúne uma multidão de inconscientes
quantos são os que ouvirem e ouvirem
o som do óbulo descendo
pela surda caixa do esquecimento.

SOLILÓQUIO EM POTSDAM – Peter Neville Frederick Porter

 

Tradução de Floriano Martins
.........
Ali estão sempre os pobres –
conseguindo criar-se a si mesmos
em suas casas abarrotadas,
comendo nas paróquias,
perdendo seus próximos dentes
e aprendendo a evitar porradas,
tornando seus
corpos resistentes – exemplos
para a aberrante noz da mente.

O rabo do gato controlador das nove,
a misericordiosa
disciplina das horas de treino – melhor
do que ser pobre criatura na Europa
abarrotada, as águas cisnes-varridos onde os vultos
arrastam-se pelo ganha-pão
e os mortos encharcados são roubados
a caminho da sepultura.
Eu posso ouvi-los dessa janela,
o treino-mosquete
na quadra de vaias.
Mais tarde visitarei a ala dos castigos.
Quem mais na Europa
suportaria essas verminosas, azunhentas criaturas
e nelas faria romper homens?
Os das costas esfarrapadas
e das pélvis quebradas,
quando soa o tambor-secundário,
quando acenos uniformizados inclinam-se e oprimem
o comércio mundial de cheeseburghers,
os organismos senatoriais.
Reformistas sentam-se à minha mesa,
eles são favoráveis mas nunca viram uma batalha
ou observaram o cérebro modelado no corpo açoitado
caminhando para a morte
num ventre inchado de sopa e ordens.
Ali se vive na miséria ou então se é disciplinado.
Pessoas terão que morrer porque eu não posso suportar
seus apegos à vida.
Por que os melhores trompetistas são sempre franceses?
Observe o oeste, as águas passadas da revolução.
Agora de volta ao Quantz.
Eu gosto de pensar que numa tarde de três sonatas
uma centena de regimentos deve marchar mais milhas
do que mentir entre aqui e Viena
e não depois que um homem tenha interrompido seu passo.
Quem o teria amado se ele pudesse ser temido e malvisto,
porém quieto desfruta sua luxúria, come bem e toca flauta?

TRÊS POEMAS – Robert Sabatier

Tradução de Alexei Bueno
.....
MEMENTO MORI

Não levanteis esta capa de chumbo
Onde meu corpo jaz em seus marfins,
Meus olhos sem mim vagam pela noite,
Contai meus dentes no esqueleto pardo.

O asceta jovem de silentes carnes
As palavras reuniu: o bem, o mal,
Verdes leitos. Lá deita a sua beleza.

Naquele tempo, fluíam fontes quentes.
Leve murmúrio era o seu corpo, o corpo
Onde aves aninhavam, frases vivas.
A morte, a morte as fez voar mais longe.

Contra o seu dorso, estranhas cartilagens:
Alado, como um morcego, ele fora,
Ninguém via essas asas invisíveis.
Anjo, ele o foi, e ninguém nunca o soube.

Não levanteis esta capa de chumbo
Aí acharíeis certo dois cadáveres:
Num corpo só dois homens se batiam
Para melhor se unir no poema único
Da tristeza, oh essa tenra criança morta.
.....
TOURO

O filho da água se desfaz na bruma
Para melhor amar o inseto e as folhas.
Sua irmã a lua acompanha seus passos,
O pirilampo é sua única música.

Ele partiu, a cidade nas costas,
Ele chegou sem morte ao outro mundo,
A face viva esquecida na aurora
Por um rebanho de obstinados cegos.

Ele mirava a infinidade de astros
No dia pleno – sou maçã ou tordo?
Ou bem fendia o mundo como um ovo
Para fitar seus secretos pensares.

Ele aspirava o aroma do porquê
E, o paladar do homem sobre a língua,
Amadurava os trigais de seus olhos
Para banhar-se em sua imensidade.

Colhamos rosas de cristal, colhamo-las
Para entrever as estações que fogem.
Ele que dura como aguda flecha
Fura por nós os segredos do dia.
.....
PAISAGEM MORTAL

Não há mais a ave, o monstro ainda não veio,
Aonde chegar neste mundo esmagado?
Aí somos nós, a morte em nosso seio,
carne com carne, em meio ao dia alheado,
em marcha exausta até um amanhecer.

Não há mais entre um homem e sua sombra
que um vácuo onde seus dias têm passado.
Astros que comem mundos, noite hedionda,
eu planto um grito qual punhal roubado
no flanco onde Deus ia em sua ronda.

Toda a dor aos seus êxtases me leva.
É isso o crime, é essa a paz que aguardo?
Entre as palavras, rostos se encarceram
que me dão medo. Uma estação, e eu ardo
em roê-los com a verbal fome primeva.

Não há mais a ave, olhar nenhum se espalma.
Busca-se um fosso aonde adormecer,
mas tantos corpos há, sem sonho ou alma,
que o homem no homem teve de morrer
e os vocábulos nutrem-se de lábios.