quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

FRAGMENTO FINAL DO PRIMEIRO CANTO DA ARTE POÉTICA - Nicolas Boileau-Despréaux

 

Tradução de dom Diogo de Menezes, Conde de Ericeira
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De alguns gênios os tristes pensamentos
Embaraçados sempre em nuvens densas,
Não podem da razão nos luzimentos
Desbaratar as fúnebres ofensas:
Cuidai, se de escrever tendes intentos,
Dando à ideia as luzes mais intensas,
Que o que puro ou confuso se concebe,
Mais claro ou mais escuro se percebe.

E sobretudo não caiais no abismo
De adulterar do idioma o ser sagrado,
Nunca admitais pomposo barbarismo
Inda na melodia disfarçado:
De que serve um soberbo solecismo?
Que vai um termo próprio e viciado?
Enfim é o poeta mais divino
Sem pureza da língua autor indino.

Cuidai com ordem, e escrevei sem pressa,
Não presumais de rápida loucura;
Um estilo, que corre, e nunca cessa,
Pouco do entendimento a força apura:
Mais do que uma torrente, que se apressa
A inundar a campanha áspera e dura
Estimo um rio, que na branda areia
Vagaroso entre as flores se passeia.

Lento vos apressai, mas neste espaço
Não desmaieis por não achar conceito,
Vinte vezes aplique à obra o braço
A forja de que foi discreto efeito:
Poli-a sem cessar, sem embaraço,
E tornai-a a polir não satisfeito,
Dai-lhe talvez aumentos primorosos,
E riscai, que estes versos são gloriosos.

Não se estima um poema, que reparte
Acertos com mil erros desluzidos;
Hão-de ser sempre iguais em toda parte
Os extremos ao meio dirigidos;
Firmam um todo as obras de mais arte
De partes diferentes aos ouvidos;
E assim nunca o discurso perca o fio
Buscando longe um culto desvario.

Temeis aos vossos pública censura?
Sede a vós mesmo crítico severo;
A ignorância admirada não murmura,
Mas buscai confidente o mais sincero:
Num amigo a verdade é mais segura,
Dos vossos erros inimigo austero,
Humilhando de autor louca vaidade
Distinguindo a lisonja da verdade.

Crede mais os conselhos que os louvores,
Que algum mostra que aplaude e satiriza;
Vede um adulador com que clamores
Em êxtases os versos soleniza:
Tudo é divino, tudo são primores,
Nada o ofende, tudo o suaviza,
Enternecido chora, alegre salta,
E com vãos elogios vos exalta.

Oh que a verdade ignora fingimentos,
E um sábio amigo, duro, rigoroso,
Não dispensa os mais leves pensamentos,
Com vossos erros nunca foi piedoso:
Ele coloca os versos mais violentos
Da ênfase ambiciosa cuidadoso,
Na frase, na gramática repara,
No equívoco duvida, o termo aclara.

Assim um verdadeiro amigo fala,
Mas intratável vós em recompensa,
Quereis dar tom à obra, apadrinhá-la,
Interessado na suposta ofensa:
Se uma baixa expressão vos assinala,
Para que passe lhe pedis licença;
Isto é frio (vos diz), oh! que é notável;
Isto é mau. .. oh! senhor, que é admirável.

Depois de os recitar muito contente
Logo um simples encontra a que os refira,
Que um néscio autor no século presente
Sempre encontra outro néscio que o admira:
Na nobreza e no vulgo juntamente
Tem parciais a ignorância, em que respira,
E sempre louva (a sátira é constante)
Ao ignorante algum mais ignorante.

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