quarta-feira, 6 de abril de 2016

CANCIONEIRO DE LAMPIÃO – Nertan Macedo

Menina vou te contar
a história de um cangaceiro,
bicho bom de pé ligeiro,
lobisomem do sertão.
Comia moça donzela,
reparava a injustiça,
estrangulava menino
por ato de diversão,
entrava nos povoados
e deixava em petição
de miséria o prepotente
vergado na punição.

Desocupado, erradio,
vagueou como um papão,
por muitos anos a fio
não buscou a salvação,
tinha grande protetor,
o padre Cícero Romão,
no lugar onde chegava,
era vigário e juiz,
amancebado casava
e livrava o infeliz
que nas grades da cadeia
vivia curtindo peia,
delegado de polícia
escapava por um triz.

Nos doze pares de França
foi buscar inspiração,
seu chapéu era igualzinho
ao do rei Napoleão,
o imperador Carlos Magno
houvera em ter paixão,
valente como Olivério
brigava como Roldão,
dos tempos mais recuados
só Osório e Ciprião
podiam ser comparados
ao guerreiro Lampião.
delegado de polícia
escapava por um triz.

Nestes autos vou narrar
a vida de Lampião,
quem tiver oiças, escute
e faça do coração
a via do entendimento,
pois nada vale a razão,
sangue e terra se misturam
em perpétua comunhão,
na linguagem do mistério
dou a minha tradução,
o demônio sobrevive
no descendente de Adão,
quem de si não o afugenta
apodrece na prisão,
o homem não nasce bom,
já nasce na expiação,
se o anjo prevalece
já teria morto o Cão.

Mariana se me dessem
o mundo para optar,
as riquezas do rei-sol,
as arcas de Bagdá,
as mulheres do Sultão
as caravelas do mar,
Oropa, França e Bahia:
pobre de mim ô menina,
que não posso governar
sequer o próprio destino,
minha alma comandar,
pelo dia, pela noite,
nas rédeas do deus-dará,
ao sopro desses poderes
que germinam pelo ar.

Menina, esta dura rima
foi sina que Deus me deu
não entôo como dama
tão fina de camafeu,
meus versos são oprimidos
mas nascem do peito meu
não possuo a luz dos olhos
mas conheço o próprio eu
e nem por isso renego
esta existência de breu.

Por acaso não sou eu
um filho da solidão?
Sei que me falta no olhar
mas não me falta a visão
para entender e contar
a vida de um capitão,
que preferiu ser bandido
a ser um grande poltrão,
a mesma alma atrevida
de Alexandre e Cipião,
que reviveu em Davi,
na possança de Sansão.

Os que o viram de perto
tinham lá sua razão
A gente olha pra ele
não vê cara e coração,
a memória não resiste,
queda logo em confusão,
e a gente se pergunta
se ele existiu ou não,
se teve começo e fim
ou foi apenas visagem,
pode até ser que retorne
sob forte invocação,

No entanto sua vida
podia ter sido outra,
não era ele cristão
alimentado na fé,
não era ele rebento
de Maria e de José,
não foi criança inocente
nos campos de Nazaré,
homem gerado no ventre
e nascido de mulher?
Só não teve a paciência
do cego de Siloé.

Não era aranha de teia
para findar na cadeira,
conduzido numa rédea
aos sete palmos do chão.
Não foi pássaro cativo,
foi ave da solidão,
cometa de aço e prata
labareda de mistério,
em céu de desolação,
chama de assombração,
candeeiro de pavio
aceso na escuridão.

Ainda vi no Navio
o velho João Vagalume
vivia pedindo lume
para atender o cachimbo.
Conheceu o Virgulino
quando ainda era menino
e dizia muito grave:
o amarelo foi chocado
como se fosse uma ave,
vai acabar no cangaço,
o diabo comete entrave,
magro, tinhoso, arteiro,
só usa faca de ponta
até pra tirar argueiro,
termina no formigueiro,
trespassado à lambedeira,
se vingar vai dar ruim,
tirano e raparigueiro.

Oriundo do Pajeú
foi morar em Nazaré,
quando um chefe de volante
matou o velho José,
o nome de sua mãe
era o da Virgem Maria,
e foi tanto o seu pesar
que morreu no mesmo dia.
O sargento João Maurício
enterrou os dois velhinhos,
Lampião pegou o rifle,
armou-se pelos caminhos.

No meio daquele mundo
daquele mato rasteiro,
a alma ficou liberta
e o peito mais ligeiro
no seu fundo respirar.
Sebastião Pereira
é hora de caminhar.
Não haja mais um Carvalho,
não haja mais um Nogueira,
sou uma aberta ferida
toda ela consumida
como pasto de bicheira.

Ferreira de Vila Bela,
era bom filho e irmão,
teve gado, teve terra
teve cerca de melão,
burro, garrote, novilho,
sabiá e azulão,
galo de crista vermelho,
arapuá e alçapão,
mestre-escola, oratório
e santos da devoção
o menino Virgulino
Pegador de barbatão.

Amansador de coragem,
reputava a profissão
seleiro de fino gosto
soveleiro, sovelão,
fazia como ninguém
uma perneira, um gibão,
tocava de oito baixos
sanfoneiro de emoção.
Dona Sinhá abra a porta
estou com sede de cão,
os danados me aperreiam,
eu não quero briga, não.

 Sebastião, qual é mesmo
quem chamam Lampião ?
Antonio botou o rifle
na cabeça do irmão.
É este escuro, mulher,
mas não alumia, não.
Sob a luz do candeeiro
apareceu Lampião,
olho cego e varado
no meio da escuridão,
o fumaceiro escondeu
a cara do Capitão.

Dormia de olho aceso,
chamejando a escuridão,
piava como coruja,
rugia como um leão,
pereira de vôo sereno
arribava de manhã,
cativo da passarada,
do canto da jaçanã,
não era alto nem baixo
mas de estatura meã:
foi assim que o descreveu
um soldado ao cantador
das bandas de Jatinã.

Espoleta de macaco
é faisca de fogão,
estala no meu punhal
como traque de rojão.
Maria, me passa a brasa,
vou acender meu facão,
com tiro de bacamarte
vou promover um festão,
se me pegam vivo ou morto,
querem ganhar promoção.
Soldado, rosa vermelha,
foi bala no coração.
Acende a trempe, Maria,
na umburana de cambão.

Tenho casa, tenho fome,
bolandeira no Salgueiro,
na serra da Cana Brava
coronel é coiteiro,
na serra do Logradouro
o compadre é fazendeiro,
nas furnas da Serra Negra
viro bicho maloqueiro,
no Limão, no Canindé
tenho cavalo estradeiro,
suspiro pelo descanso
no viver de cangaceiro,
quero moça de janela
em Custódia e Tabuleiro.

Foi peixe em Poço do Negro,
graúno em Pelo Sinal,
foi onça na Camatuba,
foi ema nas Aroeiras,
foi tatu no Pau de Ferro
e cobra nas Ipueiras,
gato em Cipó de Gato,
e raposa nas Caieiras,
camaleão nos Serrotes,
coruja nas Cabaceiras
cabrito nas Roças Velhas,
barbatão nas Cajazeiras.

Quero prata reluzente
e sinos de Salomão,
quero bornal enfeitado,
argola, brinco e botão,
quero prata, quero ouro,
quero cruzado e tostão,
quero cantil areado,
cobertor e patacão,
medalhas do Juazeiro
da Virgem da Conceição,
tudo que brilha rebrilha
pra compor o meu brasão.

Seu cavalo era um fidalgo
com narinas de trovão,
rufava como um tambor
na frente do batalhão,
cada pancada do casco
fendia a terra no chão,
nas cores do meio-dia
era cinzento e cardão,
era de prata azulada,
era vermelho alazão,
ancas de ouro e negro,
rompe-nuvem de algodão.

Cavalgando nas auroras,
em remotos incendidos
no viver dos perseguidos
nos calcanhares do dia,
o olho fundo vazado
sem retenção dos outroras,
capitão do meio-dia,
governador dos gerais,
foi Virgulino Ferreira
de alcunha Lampião,
que nasceu em Vila Bela
pra varar a solidão.

Couro, bando, papa-ceia,
o chão imemorial
O bode, o cavalo, o boi,
o sentimento mortal.
O homem, caça dileta,
refletido no punhal.
a mente escura de bicho,
ruminante e animal.
Cigano, rifle, moedas,
brilhantes de mineral.
O punhado de farinha,
Carne seca no bornal.

Pelos caminhos da noite,
pelos caminhos do dia,
as alpercatas de couro
batiam no duro chão,
e os rolos de poeira,
subiam na imensidão,
as redes avermelhadas
entre selas e cangalhas
e o cheiro suarento
das alimárias exaustas.
E na frente do comboio,
reluzindo entre punhais,
capitão do meio-dia,
governador dos gerais,
óculos, anéis, cintos, lenço,
rutilantes minerais,
nomes de guerra afamados,
inscritos nestes anais:

Ezequiel e Livino,
Fiapo e João Gameleiro,
Juriti e Vitorino,
Luiz Pedro, Pitombeiro,
Pinto Cego, Come Cru,
os quatro irmãos Marinheiro,
Jurema, Vicente Gago,
Serra Verde, Lavandeiro,
Antonio Quelé, Bom de Velho,
Luiz Torquato, Ferreiro,
Ventania, Tiririca,
Suspeita, Teto, Coqueiro.

Cobra Verde, Jararaca
Cravo Roxo, Beija-Flor,
Carrapicho, Mão Foveiro,
Baraúna, Três Melão,
Marreco, Zé da Lagoa,
Vela Branca, Mergulhão,
Malagueta, Moita Brava,
Serra d’Umã, Azulão,
Fumaça, Gato, Corisco,
Sabino, Peba, Trovão,
Pedro do Ingá, Asa Branca:
— Pronto, seu Capitão !

Nos arcabouços do azul,
no vermelho dos poentes
o sangue dos inocentes
afogava o Capitão.
O arco-íris brilhava
no meio da imensidão
a chuva desceu do céu,
o milho subiu do chão,
os mortos dormiam em paz
nos campos da solidão:
mas a Parca ia no encalço,
no rastro de Lampião.

Tanto ressoar de vozes,
e mugidos desiguais,
tantas centelhas de sol,
longínquas duras, gerais,
tanta paisagem de cinza,
serpentários vegetais,
verde brejos, verde várzea
de magros canaviais,
no escuro das queimadas
mansos ventos nordestinos
povoam de sombra o mundo
das cancelas e currais.

 Nuvem, nuvem, lua nova
comboio assarapantado.
Capitão, estão dizendo
lá embaixo no arruado,
que vosmicê é corcunda,
mulato e desajeitado,
bota um arco na cabeça,
anda de corno emborcado,
tem medo de papa-ovo,
de preá e de veado,
só briga com anão de circo,
menino, cego e aleijado.

Esbarra aí, Mão de Grelha,
sai pra lá com teu fuxico,
eu posso não ser bonito,
porém corcunda e mulato,
considero um desacato --
vou arrasar essa peste!
Não sou zebu nem camelo,
não sou tôco de tição.
Sou Virgulino Ferreira,
o Capitão do sertão.
Sempre aceso neste mundo
de terror e maldição.

Sentinela, irmãos das almas,
o morto não tem caixão,
meu corneteiro zambeta
toca clarim, chama o Cão,
os meninos se arrepiam
de medo na escuridão,
apodreço nos carrascos
sem teto, sem água e pão,
fome, nudez e dinheiro,
rosário bento e tostão
o defunto dessa rede
quem matou foi Lampião.

Capitão não arrefeça
no canto da siriema,
não apague a luz da morte,
Virgulino Lampião.
Velha cata graveto
para acender o fogão,
rendeira canta cantiga,
costurando em solidão,
geme a negra suarenta
no baticum do pilão,
no estalido do relho
burro anda em procissão.

Eu me chamo Lampião,
mas é só de brincadeira,
acabe com essa besteira,
deixe de vadiação,
quem alumia é o tiro
que eu dou na escuridão,
mato andorinha voando,
quanto mais um gavião,
mato sargento e tenente,
coronel e capitão,
cabra frouxo da sua marca
mato até com bofetão.

Lua, lua, meia-lua,
sol, soleira, solidão.
Viajante, tire a venta
do fundo desse malão,
abra esse frasco de cheiro,
o elixir de alcatrão,
quero pente e sabonete,
toalha de enxugar mão,
quero o relógio de ouro,
o morim e o fustão,
toda a seda e o magote
de vela branca e sabão.

Capitão não tenho medo
dessa sua pabulagem,
me deixe seguir viagem
que tenho filho e mulher.
Preciso ganhar a vida,
não sou de vadiação,
o senhor pode me dar
um tiro no coração,
mas falo a santa verdade,
não sou de tapeação,
só me meti nestes lados
fiado do Capitão.

Vá embora, viajante
que eu vou noutra direção,
dê lembrança ao oceano
que da terra é grande irmão,
dê adeus aos marinheiros
que fazem a navegação,
também eles como eu
só vivem na solidão,
diga ao seu governador
que eu não largo esse torrão
pode mandar à vontade
metralhadora e canhão.

Tangedor, lá vão as nuvens
nos rumos do Piauí,
carneirinhos de Jesus,
eu quero todas aqui.
Vaqueiro solte o aboio
que eu solto três assobios,
chamo cobra, chamo vento,
apago a luz dos pavios,
atiro de baladeira,
de bodoque, de espingarda,
minha pedra vai certeira
no rastro dessa manada.

Luares de mortas luas
e luas de solidão,
na pisada da caatinga,
No compasso do pilão,
minha mãe me dê uma lua,
vou atrás de Lampião,
o chapéu de Virgulino
é uma lua no chão,
quero ser lua marido
nos braços do Capitão,
esquentar a sua rede
nos invernos do sertão.

Meu pai fiquei aluada
com a lua do sertão,
vinha eu pela estrada,
espiei, vi Lampião,
cornimboque prateado,
cheiro de manjericão,
levou-me pela cintura
e me deitou no grotão,
acordei desfalecida,
lua nua em sua mão,
deixou-me marcas, no ventre,
de revólver e cinturão

Vi quando ele sumiu,
rasga-mortalha piou
na cerca desse curral
o anum preto pousou,
quando passei no barreiro
um grilo doido cantou,
lavei meu corpo ferido,
um cururu se espantou,
sou o figo da figueira,
passarim me beliscou
guriatã de coqueiro
que bateu asa e voou.

Capitão de muitas luas
de muito sol abrasado,
no amor do descampado
foi ave de arribação,
sua cabeça era alada
nos ventos do chapadão,
voa seu chapéu de couro
em noite de aparição,
o filho de sua carne,
gerado na escuridão,
passarinho do meu sonho,
bateu asa da minha mão.

Menino morto no açude,
chuva levou paredão,
vela acesa na cabaça
desliza na escuridão,
galinha d’água fugiu,
corisco, raio, trovão,
atrás da Serra Vermelha
houve um enorme clarão,
fui ver de perto a cabaça
em água de solidão,
boiava na superfície
a cara de Lampião.

De uma feita vinha o bando
acossado pelo frio,
deparou com um casebre
abandonado e sombrio.
Ô de casa, ô de dentro,
ninguém respondeu, vazio.
A muito custo uma voz
saiu daquele sepulcro
e no alpendre apareceu
um homem com um capuz
levantou o candeeiro,
Lampião retrocedeu.

Capitão, morri em vida,
já não posso trabalhar,
fui corrido da cidade,
Escolhi esse lugar.
estou leproso e doente
deste mundo vivo ausente,
até minha hora chegar.
Pediria ao Capitão
que tivesse compaixão,
pois tenho filhos, mulher
que não me quer renegar.

Todos haviam fugido
com medo da aparição,
só Virgulino ficou
plantado na escuridão,
sob o capuz de leproso
a carne da podridão,
na parte dilacerada,
dolorosa a expressão.
Ele voltou a falar:
não entre, seu Capitão,
me deixe em paz, no sossego
meus restos de solidão.

Sete luas, setestrelo,
sete volantes no chão,
céu azul faço vermelho
como ponta de tição,
no Razo da Catarina
sete rastros de leão,
sete pés de ventania
pra fazer assombração,
meu padrinho decretou
patente de Capitão,
sete dias demorei
a beijar a santa mão.

Arribou do Araripe
em noite de escuridão,
foi bater no Juazeiro
receber o seu galão,
ajoelhado no pó
fez ato de contrição,
quando avistou a cidade
do amor e do perdão.
A Mãe do Céu te proteja,
Virgulino Lampião.
Vim pedir a sua benção,
Padrinho do coração.

Passou ao largo do Crato,
em terras do Cariri,
não tocou nessa cidade
muito orgulhosa de si,
comeu e bebeu à farta
garapa, mel e piqui,
paçoca, leite, alfenim,
graviola e murici,
tomou água do Lameiro,
cachaça do Buriti,
nunca viu tanta opulência
de Sergipe ao Piauí.

Padrinho, sou uma ovelha
que a vingança desgarrou,
cumprindo o fado cruel,
pois o Céu me desterrou
venho aqui como afilhado
pedir a bênção e o perdão,
ando tão necessitado
da santa absolvição,
perseguido dia e noite,
torturado de aflição,
expulse de nós, padrinho,
esta grande maldição.

Houve silêncio e o padre
fazendo o sinal-da-cruz,
mandou que se ajoelhassem
e disse: Vai com Jesus,
com Maria e São José,
com a Senhora das Dores
e a Virgem de Nazaré.
Também o Cristo morreu
pela nossa salvação
e quando expirou no lenho,
entre tantos sofrimentos,
legou-nos o seu perdão.

Meus filhos, não roubem mais,
respeitem a mulher do próximo,
não furtes nem matarás,
dizem as santas escrituras,
e nas lições destas puras
lembranças de Nosso Senhor
peço que cada um
sofra calado sua dor.
E erguendo a mão ao céu
novamente abençoou
apoiado num bastão,
o grupo todo chorou.

Comoveu-se o patriarca
naquela situação,
dizendo: ao terceiro dia
subiu a ressurreição,
dos cimos desceu o anjo
para guardar o sepulcro
e quando a Virgem chegou
caiu em pranto e chorou.
O anjo não explicou
que Deus havia chamado
ao trono de sua glória
O seu Filho bem-amado.

Como Ele nós também
levantaremos do pó.
Basta cumprir o preceito
de Jesus o Salvador,
que redimiu cada um
carregando Sua Dor.
Pelos séculos afora,
no Vale de Josafá,
quando descer um anjo
e a trombeta tocar,
estarei ao vosso lado
a Jesus Cristo louvar.

No grande incêndio de Deus,
nessa terra sem pastores,
aos chocalhos renitentes
badalam nos corredores,
em veredas pacientes.
Desconhecemos as flores,
somos todos penitentes,
cantamos no esquecimento
benditos de piedade:
- Dai-nos chuva, bom Jesus,
salvai-nos da iniquidade,
protegei-nos da maldade.

Sou agora Capitão
patriota do Ceará
tenho tanta munição
como peixe tem o mar.
Dona arreie o vestido,
vamos beber e dançar,
arreie a calça, menina,
vou sua bunda furar,
bota brasa Cobra Verde,
neste ferro de engomar,
bicos de peito donzelo
esta noite vou queimar.

São bodes ou são profetas
que vagam pelos cerrados?
Sabino, nossos destinos
São como rios secados,
seixos nessas planuras,
cacimbas de amarguras
tristes, vazios, mirrados.
São macacos da Coluna
ou cabritos desgarrados?
Não vou gastar munição
com tão pobres desgraçados;

Atacou a baronesa,
levou joia, pedraria,
todo o gado do curral
e toda a cavalaria,
a nobre de Água Branca
ficou pobre num só dia,
o ato de malvadez
acabou a baronia,
o fato repercutiu
do Ceará à Bahia,
pouco depois do assalto
Antonio Ferreira morria.

Não narro perversidades,
que foram tantas, não sei,
lembro o caso de João Nunes,
coronel pernambucano
que viajou amarrado
na mão, no pé, no tutano,
na barriga de uma besta
até perto de Tucano.
Da morte livrou-se ele
por causa de um soldado
que largou a sua túnica
Depois de ter desertado
se despojando da farda
pela vida desregrada.

No cerco de Mossoró
recuou com grande espanto,
o sino repicou tanto
de ódio verteu o pranto,
mais parecia um encanto
das forjas de Satanás.
Nessa cidade maldita
sofreu revés de desdita
de que nunca se curou.
Ficou mais ensimesmado,
no seu silêncio trancado
e nunca mais se animou,
as unhas foram crescendo
a cabeleira aumentou.

No Razo da Catarina
quarenta léguas de chão,
desceu um bicho do céu,
envolto na combustão,
trouxe no bico alimento,
trouxe água, trouxe pão,
foi assim que ele varou
aquele grande sertão.
Este é um feito de gênio
na história do Capitão,
são os mistérios que cercam
a humana condição.

Antonio Ferreira morreu,
Ezequiel Ponto Fino,
foram todos ao Divino
Coração do Redentor.
O Capitão Virgulino
sofrendo imensa dor,
com sua asa de morcego,
Sabia que no esplendor
os irmãos não entrariam,
mas no reino do horror,
onde o anjo decaído
vive no eterno torpor.

Uma tarde ele chegou
numa vila franciscana,
a mulher do sapateiro
era muito leviana,
largou os filhos pequenos
na casa de uma avó
e açoitou o cavalo
com um garrancho de cipó,
o animal parecia
coberto de ouro e pó,
sumiu na curva da estrada
sem piedade nem dó.

Capitão, tenha piedade
dos meus filhos pequeninos,
a mãe deles endoidou,
são dois coitados meninos.
Maria não vá embora,
tenha pena das crianças,
tire esses grampos dos dentes
e desenrole essas tranças.
Capitão essa mulher
tem parte com o demônio,
alvoroça o mundo inteiro,
vai lhe perder nas andanças,
não é fêmea que resista
aos combates e matanças.

Almocreve, dê notícia
do Benjamim Abraão,
o turco do Juazeiro
Que se meteu no sertão
e veio fazer a fita
do bando de Lampião.
Capitão não vi o gringo,
Mas soube no Riachão,
onde ele pernoitou
inchado como um pavão,
levava muito retrato
dos homens do Capitão.

Cumpria o santo preceito
com toda a veneração,
no domingo ele acampava
em causas de devoção,
quantas pedras foram aras
da Virgem da Conceição!
Puxava terço e novena
com humilde contrição,
das almas do outro mundo
fazia a encomendação,
vivia sempre pensando
no pai morto e no irmão.

Mas a grota dos Angicos
foi a sua perdição.
Maria bem que dizia
aquilo tem maldição.
Estava tão reduzido,
em tão ruim situação,
tão deprimido e doente,
era tão grande aflição,
que não mais se separava
de um frasco de veneno
do tamanho de um breve,
pendurado junto ao peito,
na altura do coração.

Alvores da madrugada,
Nos ermos da solidão,
estrela bela, cadente,
tombando do céu luzente
na cova escura do chão.
Existiu na natureza,
como o ar na amplidão,
como o lume e o braseiro,
como a água e o clarão
do pó da terra oriundo,
ficou sozinho no mundo,
perdido na criação.

Foi esse o último dia
que viveu por esta terra,
quando a noite terminou
logo o fogo começou,
Caindo ensanguentado
a mulher se ajoelhou
e foi logo suplicando
a Deus do Céu o perdão.
Aí não se viu mais nada,
foi completa a escuridão,
Maria Déa morreu
ao lado de Lampião.

Foi assim que se cumpriu
uma antiga profecia
dos tempos do Conselheiro.
Daqui a cinquenta anos
um tenente bandoleiro,
varando pela caatinga,
furando no tabuleiro,
semeará morte e lenda
no Nordeste brasileiro.
No sumidouro do Além
seja o bom Jesus louvado
e os anjos repitam: amém.

Onde está Maria Bonita
com seu porte de pavão?
É agora uma serpente
nas profundezas do chão.
Eva do inferno sombrio,
rainha da tentação,
enroscada nos cabelos,
no rosto do capitão,
que neste mundo de Deus
alisaste com a mão:
e quem, nesta claridade
se lembra da escuridão?

O sol do dia tinia
na lâmina do facão,
quando o tenente curvou-se
pra decepar Lampião,
tem piedade de nós,
Senhora da Conceição.
Urubus foram chegando,
eram grande multidão,
começou a trajetória
em cima do caminhão,
o circo mais esquisito
que já passou no sertão.

No país dos nordestinos,
de agouros infinitos,
ainda se ouvem os gritos
do seu feroz combater,
na toada das rendeiras,
na voz do cego das feiras,
o peito quente do povo
espera o seu renascer.
Corpo agora sem cabeça,
virou alma do outro mundo,
medusa de um profundo
sono sem amanhecer...

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