terça-feira, 30 de novembro de 2021

POEMAS – Antônio Carlos Gomes

SOU VIDA

Sou parte da natureza
Sou vida!
E como ela
Trago:
Avalanches e sorrisos
Inundações e alegrias
Maremotos e poesias
Tufões e recordações.
Enquanto viver
Instável serei
Como a natureza
Aí é que mora a satisfação
Não importa o certo e o errado
Mas
Somente prosseguir
Vivendo e amando
Entre calmarias e tufões.
..........
REMORSOS

Penso em ti
Moldo-te em fantasias
As quais alucino
Sinto-te presente
Em meus desejos
Anulada...
E, te vejo bela,
Dominada...
Arrependo-me:
Responsável sou pelo que penso,
Como me atrevo a anulá-la?
Giro na sala em penitência...
Como fazer poesia
Sem deturpar a amada?
Como evitar o crime
De fazer alguém igual a meu pensar?
Arrebato-me!
Arranco uma rosa
Embalo...
O sorriso da rosa
O sorriso da amada
Dois sorrisos envolvem meu pensar
Já posso amar sem remorsos.
........
SENSAÇÕES

Quando a mente em estranhos arranjos
Etéreos, impalpáveis
Envolve-se suavemente
Nos fumos abstratos, sinuosos...
E adentra algum lugar do Universo,
Um recanto perdido, talvez
Formado de raios místicos
Dimensionando todos os sentidos,
Daí:
Em gestos de estranha linguagem
Falamos deslizando no vácuo.
É um passo torto à direita,
Outro a esquerda,
Um traço... Uma cor...
Um sorriso...
Um tropeção!
Outra cor: É o negro!
Outra o vermelho
De repente explode
É Wagner! Revolução!
Estabiliza-se lentamente
É Bach! Inspiração.
A ordem das sensações tece-se.
Nada é pensado. Tudo é abstrato:
Em um átomo desenha-se amor,
Em um olhar beleza,
Em um gesto calma,
Em um piscar ternura...
Desindividualizados
Da crosta aparente das reações humanas
Vemos o íntimo das coisas,
Nas paisagens do recanto –
Cheia de fadas e dragões-
Da poesia
Guerra,
Prostituição...
Completamente ébrios
Conseguimos viver intensamente.

ACALANTO – Valdeci Ferraz (1949-2021)

 

Do livro inédito “Terra dos Homens Clonados”
...........
Você não viu a noite escura
nem as feras por trás das árvores
porque eu roubei as estrelas do céu
para iluminar o seu mundo.
Você não sentiu o gosto amargo
de uma despedida precoce
porque eu estendi um lençol
de sonhos sobre a sua cama.

Você não ouviu o canto encantado
das sereias noturnas
porque eu fechei os seus ouvidos
com a cera de meus beijos.
Enquanto você dormia
eu enfrentava dragões e tempestades.
Enquanto você crescia
eu lapidava os paralelepípedos da sua rua.

Você não sentiu o frio cortante
que vem com a força de um Siroco
porque eu aqueci as madrugadas
com o fogo de meus poemas.
Eu não queria lembrar os momentos
daquela chuva de gelo
para quebrar a telha a impedir meus lábios de dizer:
– Eu te amo.

Hoje você enfrenta os lobos da noite
e dorme sem medo do escuro.
Crescida, ávida, vivida,
descobre que o sol sempre se levanta.
Mesmo que os dragões e os lobos
ainda estejam por trás das árvores.
Mesmo que eu não consiga mais
erguer paliçadas poéticas.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

POEMAS – Tita de Lima e Silva

 

AUTORRETRATO

Sou Tita do cheiro de terra
das chuvas de setembro,
cupim agarrado no chão.

Um amor às vezes bruto,
às vezes sereno
como água de fonte.

Minha delicadeza é relativa
como a da flor silvestre.
.......
ATMOSFERA

O quintal das solteironas na tarde:
Uvas,
pêssegos,
limpeza
e flor.

Caminhos brancos
muito varridos,
as portas fechadas,
a luz acesa
antes do entardecer.

Em cima do muro, nós:
pálidas crianças
paralisadas pelo mistério.
*
Eu nunca perdoei o Grupo Escolar
que roubou minhas tardes,
o meu pé de goiaba,
o meu quintal.

Que cortou a teia finíssima do meu sonho
por uma atmosfera cinza,
uma merenda morna,
o grito agudo da professora
e a solidão do pátio de recreio.
....
AMÉRICO

De manhã
café com pão,
ilusão
e valsas vienenses.

De dia,
o pé de mamão,
alguma bênção,
a cura dos miseráveis.

De tarde, o irremediável da morte
é o fim de todas as coisas.

À noite,
livrai-nos, Senhor,
de toda a tentação
e conduzi-me
à casa dos meus irmãos.
.....
VAGAS ESTRELAS

Inicia-se
em Brasília
a vigília da seca;
a poesia, o seu trajeto
pelos pardos da paisagem,
e eu me torno volátil
em busca da Via Láctea,
me transformo, me dilato,
encarno Pôncio Pilatos,
Aristides, Galileu
e depois volto a ser eu.

Já a chuva revolveu
a palha seca dos campos
já se acendem os pirilampos,
novo ciclo aconteceu.
......
QUATRO DA MANHÃ

Na madrugada
os dois vigias
conversam como compadres.

Sabem da vida
dos namorados e dos casados,
que é solteiro,
amasiado...

Ah, Brasília das superquadras
e das porteiras!
Tão faraônica
e tão roceira!