segunda-feira, 29 de novembro de 2021

POEMAS – Tita de Lima e Silva

 

AUTORRETRATO

Sou Tita do cheiro de terra
das chuvas de setembro,
cupim agarrado no chão.

Um amor às vezes bruto,
às vezes sereno
como água de fonte.

Minha delicadeza é relativa
como a da flor silvestre.
.......
ATMOSFERA

O quintal das solteironas na tarde:
Uvas,
pêssegos,
limpeza
e flor.

Caminhos brancos
muito varridos,
as portas fechadas,
a luz acesa
antes do entardecer.

Em cima do muro, nós:
pálidas crianças
paralisadas pelo mistério.
*
Eu nunca perdoei o Grupo Escolar
que roubou minhas tardes,
o meu pé de goiaba,
o meu quintal.

Que cortou a teia finíssima do meu sonho
por uma atmosfera cinza,
uma merenda morna,
o grito agudo da professora
e a solidão do pátio de recreio.
....
AMÉRICO

De manhã
café com pão,
ilusão
e valsas vienenses.

De dia,
o pé de mamão,
alguma bênção,
a cura dos miseráveis.

De tarde, o irremediável da morte
é o fim de todas as coisas.

À noite,
livrai-nos, Senhor,
de toda a tentação
e conduzi-me
à casa dos meus irmãos.
.....
VAGAS ESTRELAS

Inicia-se
em Brasília
a vigília da seca;
a poesia, o seu trajeto
pelos pardos da paisagem,
e eu me torno volátil
em busca da Via Láctea,
me transformo, me dilato,
encarno Pôncio Pilatos,
Aristides, Galileu
e depois volto a ser eu.

Já a chuva revolveu
a palha seca dos campos
já se acendem os pirilampos,
novo ciclo aconteceu.
......
QUATRO DA MANHÃ

Na madrugada
os dois vigias
conversam como compadres.

Sabem da vida
dos namorados e dos casados,
que é solteiro,
amasiado...

Ah, Brasília das superquadras
e das porteiras!
Tão faraônica
e tão roceira!

Nenhum comentário:

Postar um comentário