domingo, 14 de novembro de 2021

DOIS POEMAS – Pedro Eiras

 

FRAUDE

É a tua assinatura, vê,
neste documento: a tua letra,
traço a traço, com
o ataque nervoso das consoantes,
a acalmia das vogais –

é o teu nome, completo
e rigoroso, certificado por comparação
com outros documentos: atestados,
passaportes, o velho caderno
da escola primária,

é o teu aval, nesta página colonizada
por letras pequeninas, irritantes
(quem leria isto até ao fim?),
concordando, por actos e omissões,
com a sempiterna ordem das coisas.

E pouco importa se
não te lembras
de assinar: não se pode saber tudo
de cor, a vida
é tão breve.

E talvez seja melhor assim:
o que não tem remédio – remediado está;
o teu nome, argumentas, é só mais um
nesta longa lista de rubricas
ilegíveis:

não vale a pena, decerto,
meter os papéis para reclamar
por tão pouca coisa.
.................
VOTOS

Eu prometo, eu juro
que hoje vou dar conta das horas
bu-ro-cra-ti-ca-mente:
triando as tarefas por ordem
de urgência, preenchendo atento
o caderno de encargos, adiando
para outro dia as minhas
opiniões.

Prometo que vou cumprir
bu-ro-cra-ti-ca-mente
o que esperam de mim: sorrisos,
compaixão, as virtudes dos
minerais: firmeza, constância,
a máscara cristalina que deflecte
este gosto amargo de um nome
ardente.

Juro que vou cumprir
bu-ro-cra-ti-ca-mente
o currículo solene, funcionário
do mês, nunca mais amarei
senhor, na minha morte quotidiana,
doravante: frio, gélido, técnico,
eu juro,
se o mundo arde, este é o meu
impecável pulsar de máquina.

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