terça-feira, 23 de outubro de 2018

NEGAÇÃO DE SI - Dilercy Adler



Ela sonhou
sendo beijada
por um estranho
beijo ardente
impregnado de desejos
tamanhos...
desconcertantes

ela se flagra
olhando um homem
elegante que passa
e que perpassa
nas entrelinhas do seu porte
desejos irreverentes!

ela se compara
com a mulher "séria" que é
sem desejos
sem anseios
sem defeitos
"perfeita" até demais
moldada para ser
propriedade apenas
e nada mais
e aí se envergonha
se apavora
nega a si mesma 
e tenta esquecer!



O TEMPO – Evaldo Feitosa

O tempo é a distância
Entre o meu amor
E a tua indiferença.
Meu amor propaga-se
Em ondas
Que buscam as paralelas
de tua infinita inapetência
Meu amor é
Uma gota de lágrima
No oceano de tua existência
Tua existência
me consome e me basta.

BONDE ANDANDO – Gláucia de Souza

Quando a tarde continua
sem saber o pó que escorre,
das ruas, das retas, dos carros,
surgem os povos das praças:
crianças, aposentados, malucos, desempregados...

Quando a tarde
é minha, é sua,
sem saber que o dia corre,
surgem os povos das praças!
Crianças, aposentados,
malucos, desempregados,
com suas conversas descabeladas
pelo orvalho da noite...

PAI TRINITÁRIO - Hélio Pellegrino

Pai trinitário que me salvaste
Do descaminho, da treva escura,
Perdoa! o filho que ainda perdura
Na sua confusa perversidade.
Perdoa o filho, a sua loucura,
Manchado de barro, de luz impura,
Perdoa o filho, de humanidade
Manchado, aflito, na sua cidade
Feita de asfalto, de aço e guindaste.
Todo pecado, levando-o em rubro
Sangue perene, no qual descubro
Meu nome e origem, minha futura
Rede onde, à noite, submerso em sono,
Hei de encontrar-me de novo, dono
Da eternidade, da eternidade.

BILHETE DE AMIGA – Ilma Fontes

Não me queira mal
Não me queira tanto
Logo virá o desencanto
E não tenho mais palavras
Para agradecer o silêncio
O vazio de pessoas
A ausência redentora.

Lavei aquele coração de plástico
Onde está escrito “eu te amo”
- presente de uma amiga -
soprei o ar até completar o cheio
e pendurei-o num prego existente
na porta de entrada, que também é saída.
Ali ele está, presente, sempre, e tanto
Que nem se vê e nem se sente, pronto
Para se encher de poeira e murchar
Novamente,
Até a próxima encarnação.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

LEMBRANÇAS - Dorval de Magalhães



Quantas vezes voei sobre estas matas
Tendo outras metas, outros pensamentos...
Agora são martírios e lamentos,
Ideias conflitantes, insensatas.

Outrora via rios e cascatas
Em sinfonia harmônica com os ventos...
Vislumbro agora cirros bem cinzentos
E paisagens de cores inexatas.

É o caminhar do tempo indecifrável...
É o dilúvio de imensas traições,
São abrolhos na estrada interminável,
São catadupas de interrogações,
Nuvens, brumas, mistério intolerável,
Um mundo todo feito de ilusões.

O NOME - Olga Valeska

(a meus ancestrais)

Nome que invade
e alimenta
o fluxo louco dos rios
Rios que mancham e
marcam a terra
que lavram

Nome tão estranho
que acaricia
e fere o corpo
e se deixa cair
(soletrado)
como um pingente
grotesco

Vejo esse nome estrangeiro
preso em mim
não sei por qual
vontade
E que devolve o meu olhar
de espanto
como se não soubesse
dizer mais...
nada!

CHÃO BATIDO – Oldemar Justus

Chão batido, chão da vida,
pisares do meu destino,
cadências do meu penar.

Chão batido, chão da vida...

Aonde me levarás,
que frutos, flores ou espinhos,
caminho meu, me trarás?

Sabes acaso que um dia,
quando cansarem meus pés,
terás de seguir em frente,
rasgando chãos diferentes,
distâncias de outro rumar?

Pois é, caminho meu,
chão batido de hoje só.
Amanhã serás aurora.
Eu voltarei a ser pó.

AQUELA MESA... - Marina Tricânico

Aquela escrivaninha onde eu sonhava,
Aquela mesa amada e pequenina.
Era só nela em que me refugiava
Para compor meus versos de menina.

E, debruçada sobre ela, eu ficava
Envolta pela noite peregrina.
Cheia de sonho, ingênua, acreditava
Na cigana que lera a minha sina...

Ah! Se eu pudesse achar aquela mesa,
— Minha ternura— tenho bem certeza,
Ao começo da vida voltaria...

E chorando qual tímida criança,
Eu dela cobraria uma esperança,
E a volta dos meus sonhos, pediria...

DESCANSO ETERNO – Altair Leal

Quando eu morrer
não quero a bandeira do meu país,
sobre meu féretro,
não, não quero.

Não quero a bandeira do
meu estado,
nem da minha cidade,
sobre meu ataúde.
Pra que honras? Morto!

Nem do clube que tanto amo,
sobre meu esquife,
alma não tem cores...

Quero sim,
um livro de Bandeira,
para ler no meu descanso eterno,
quem sabe assim, aprendo a ser poeta.

CONTRADITÓRIA – Alberto de Sousa

Eu não suporto mais, minha senhora,
Tantos mistérios, tais contradições.
Ora me cobres de carícias, e ora
De vis apodos e de maldições.

Ponhamos, pois, sem a menor demora,
Ponto final em nossas relações.
Parto... Vou conquistar, mundo em fora,
Novos afetos noutros corações.
Não é que o amor tenha acabado. É certo
Que ele se estende sobre nós, tranquilo,
Num resplendor astral de céu aberto.
Mas é irrisório isto que sempre vejo:
— Tu só me queres quando eu te repilo
E me repeles quando eu te desejo!

terça-feira, 16 de outubro de 2018

POUCA-TERRA – Luís Pedroso

Pouca terra ou muita muita,
quase toda transformada num enxugo,
agora só pó e pedra,
sobra de espiga ou erva seca
tudo tudo

Escrevo uma carta
endereçada a nomes vagos, os expulsos,
coloco-a em marco imaginário
e deixo o futuro cair
no restolho

Pouca terra: a memória de uma vida
colectiva atingindo velocidade máxima
em precipício

Que fazer, quando todas as solipas
estiverem feitas mesinha-do-café,
soalho rústico, bibelô?

CORAÇÕES SANGRANDO - Eileen Myles



Tradução de Camila Assad

Sabe do que
eu tenho ciúmes?
Da noite passada.
Ela segurou
nós duas
em seus
grandes braços
negros
& hoje
eu seguro
entre
minhas pernas
uma boceta
trêmula.
Sangrando &
tremendo
molhada com
memórias
de pesar e alívio.
Eu não sei
por que o universo
me escolheu
para ser fêmea
tanta beleza
& dor,
tanta coisa
acontecendo
por dentro
de toda essa
mudança
em todo lugar
moedas caindo
por toda
a cama
& a morte
é um sonho.
No meio
da noite
com milhares
de amantes,
o chupão
estalando
cambaleando
a carne
profundamente na
cavidade
da noite
infinita através de
montes
de corpos
eu observo
se isso é
amor ou
guerra. A oca
bochecha
rastejante
onde
eu
nasci.

SEUS DENTES PELOS MEUS DEDOS - Fernanda Vivacqua

fruto maduro esquartejado aos cubos
começo pela unha casca incerta
escalpelar cabeças de dedos
pelos seus dentes corre
um sorriso afiado a lâmina
afoita boca saliva a língua
como cortar tomates
o caldo quente entorna
limpa os nervos dedos em riste
o tempo entre a lâmina e a carne
os dedos separados da mão
pelos seus dentes escorre
o sangue da gengiva incrustada
o corte exato de minhas extremidades
passeiam entre a tábua e a fome
a tudo dá sabor hoje
eu te dei meus dedos cortados
em pedaços miúdos cala
a boca aberta
é como cortar tomates
o fruto ácido

MEU SONHO FAMILIAR – Paul Verlaine



Tradução de Guilherme de Almeida

Sonho às vezes o sonho estranho e persistente
De não sei que mulher que eu quero e que me quer,
E que nunca é, de fato, uma única mulher
E nem outra, de fato, e me compreende e sente.

Compreende-me, e este meu coração, transparente
Para ela, não é mais um problema qualquer,
Só para ela, o meu suor de angústia, se quiser,
Chorando, ela transforma em frescura envolvente.

Se é morena, ou se loura, ou se ruiva – eu ignoro.
Seu nome? É como o nome ideal, doce e sonoro,
Dos amados que a vida exilou para além.

Seu olhar lembra o olhar de alguma estátua antiga,
E sua voz longínqua, e calma, e grave, tem
Certa inflexão de emudecida voz amiga.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

RENASCER – Cristina Semblano

Quero acordar no meu País
Sem náuseas.

Sem cheiro a corvos
A matilhas de lobos
E a cães de guarda.

Apenas o cheiro da chuva
Na terra queimada.

O regresso dos filhos
Que partiram.

E o recomeço de uma nova
Sementeira...

ELOGIO DA DIALÉTICA – Bertolt Brecht

Tradução – Haroldo de Campos

A injustiça vai por aí com passo firme.
Os tiranos se organizam para dez mil anos.
O poder assevera: Assim como é deve continuar a ser.
Nenhuma voz senão a voz dos dominantes.
E nos mercados a espoliação fala alto: agora é minha vez.
Já entre os súditos muitos dizem:
O que queremos, nunca alcançaremos

Quem ainda está vivo, nunca diga: nunca!
O mais firme não é firme.
Assim como é não ficará.
Depois que os dominantes tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem ousa dizer: nunca?
A quem se deve a duração da tirania? A nós.
A quem sua derrubada? Também a nós.
Quem será esmagado, que se levante!
Quem está perdido, que lute!
Quem se apercebeu de sua situação, como poderá ser detido?
Os vencidos de hoje serão os vencedores de amanhã.
De nunca sairá: ainda hoje.

QUANDO VIERES VER UM BANZO COR DE FOGO - Nina Rizzi

talvez a sida ou peste já nos tenha a todos
afetado a pele a não mais luzir o suor dos lombos
os olhos sejam o quê de duas coisas verdes.

também eu estalo e não terei estado em penedo
e faço sacrilégios pra que daqui a lá já não te deva
aqueles quase dois mil euros.

toda carne então é só essa coisa de meter
ternura. e os bocadinhos de lembrança
do lume à cera. vigília e nada.

quando vieres ver um banzo cor de fogo
oxalá não se enrugue esse couro que de tão velho
já não será tambor. oxalá cresçam pitangas, poemas.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

SEM DESTINO – Sérgio Borja

Se até a esperança
já é fuga
já é mortalha

Se te quedas
segregado
pela mente
ensimesmado
e cercado

Se teu horizonte
é parede
o musgo e mofo
nas veias
da muralha
em cuja malha
tua vontade desmaia
Caminha
simplesmente
caminha
até mesmo
sem caminho
a esmo
sem rumo
ou destino
pois existem
outros mundos
outros rumos
paralelos
a teus muros
concomitantes
a teu mundo.