quinta-feira, 28 de junho de 2018

INTERLÚDIO – Amílcar Dória Matos

Precisamos de datas no interlúdio:
foi antes ou depois de fevereiro?
foi em dezembro que acordamos cedo
e andamos a pescar peixes avaros?
e que setembro aquele de qual ano,
quando a gramática exibiu vogais?

Perguntas básicas, questões vitais:
saber qual eixo onde pendemos fios
que podem destrinçar o nosso rio.

Pois de outro modo, sem o calendário
dos recorrentes focos da existência,
sofremos coordenadas discrepantes,
flutuamos em naves sem velames,
morremos de lembranças arbitrárias.

Neste interlúdio que nos cinge agora,
os signos de um outrora se misturam
aos futuros enigmas delirantes
pelo horizonte que nos fez amantes.

MOBILIÁRIO ÍNTIMO – Jaci Bezerra

As paredes do sótão são feridas
e a noite em flor se agacha entre os seus muro:
é no sótão que o homem empilha a vida
e empilha o tempo que ficou maduro.

No seu interior, por entre pilhas
de tempo e mundo, a saudade cresce
ressuscitando no homem maravilhas
que exceto o homem, ninguém mais conhece.

Às vezes o sótão geme e chora, opresso,
hora em que o homem, voltando ao início,
sente, folheando o tempo nele impresso,
que o sótão respira feito um bicho.

O homem habita o sótão que o habita
e no chão deixa a pátina dos seus passos,
sem saber explicar, quando o visita,
porque no sótão o tempo é sempre intacto.

Nos dias em que o sótão cheira a azedo
e a memória do homem, inchando dói,
o homem, aninhado nos seus feudos,
quer falar mas não acha a sua voz.

O sótão, como o homem, é uma imagem
feita de imagens, no tempo desdobrada:
o homem sabe onde nasce a sua imagem,
porém não sabe em que dia ela se apaga.

Quando, para expurgar a sua angústia,
o homem abre o silêncio e o sótão se abre,
o tempo na memória é luz e música
e, no silêncio, o homem inteiro arde.

A paz desse momento é alada e exata
e resplendendo, sem nódoa e sem ferrugem,
a ternura do homem se desata
e o sótão todo cheira a flor e nuvem.

NOITE DE INSÔNIA – Emílio de Menezes


Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito.
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;

Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto.
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito.
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...

Louco e só! Desvairado! A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais.
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.

E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo,
Este horrível temor de que não voltes mais!...

GUARDEI TEU RUMOR - Dora Vasconcellos

Guardei teu rumor em mim
As palavras mortas nas cartas
Guardei a força das montanhas
Guardei a transparência do tempo
Deitei a violeta na calma
Dos meus olhos
Guardei a eternidade do apelo
A mágoa do refrão
Guardei a tarde na areia
Sobrevivi à palavra sangrenta
À narrativa sem tese
Ao conto sem imagens
Perdi tuas ausências
O hábito de olhar de longe
A vontade de ter
Perdi as curvas do crepúsculo
Perdi o outro lado da ponte
Os minutos pela água
Perdi a flexibilidade
Para o cotejo
Perdi a hora do vento
Ao te perder
Tornei a mim lentamente
Todas as memórias
São companheiras do tempo.

SER MULHER E DESASSOMBRAMENTO - Carmen Cinira



Ser mulher não é ter nas formas de escultura,
No traço do perfil, no corpo fascinante,
A beleza que, um dia o tempo transfigura
E um olhar deslumbrado atrai a cada instante

Ser mulher não é só ter a graça empolgante,
O feitiço absorvente, a lascívia e a ternura
Ser mulher não é ter na carne provocante
A volúpia infernal que arrasta e desfigura ...

Ser mulher é ter n'alma essa imortal beleza
De quem sabe pensar com toda a sutileza
E no próprio ideal rara virtude alcança !

É ter, simples e pura, os sentimentos francos,
E, ainda, no fulgor dos seus cabelos brancos,
Sonhar como mulher, sentir como criança !
......................
DESASSOMBRAMENTO

Que me aguarde, por pena, o mais triste dos fados,
e clamores hostis me sigam pela vida,
que floresçam vulcões nos montes sossegados
e trema de revolta a Terra adormecida…

Que se ergam contra mim os seres indignados
        como um quadro dantesco em fúria desmedida,
        e que, na própria altura, os astros deslocados
        rolem numa sinistra e tremenda descida…

Hei de ser tua um dia e ofertar-te, sem pejo.
        vibrante, ébria de amor, á chama de teu beijo,
        esta alma virginal que há tanto assim te espera…

E então hei de sentir vaidosa, intensamente,
        desabrochar em mim, num delírio crescente,
        o instinto de mulher em ânsias de pantera!

LINDAS MULHERES E A MINHA PELE – Abílio Terra Júnior

lindas mulheres e a minha pele
que se espelham no longo orvalho
no prazer da morna flor
que exala que se abre ao amor

nesse trajeto que se repete enrubesce
nas areias sensíveis da noite
nos esquecemos nos negros vapores
nos perdemos no covil das madeixas

suas vozes no espaço da morte
me adormecem nas estreitas vielas
dos seus hálitos perpétuos claros
dos seus íntimos anelos que vibram

suas unhas que tocam as cordas
das violas que nelas se escondem
me marcam com o sangue do espasmo
comprimem o meu jato sublime

seus pelos em círculos estreitos
me propõem um sucinto enigma
que tento solver com a língua
que se bifurca serpente faminta

seus olhares tão crespos em pares
tocam o suor dos meus poros
se espalham em tons claros
se voltam no transe se esquecem

suas luas tão escuras tão cruas
apontam-me brejeiras as escunas
nos tormentos amenos do estreito
refulge no ardor soa em flor

sábado, 23 de junho de 2018

CAMINHO AO TEU LADO - Thereza Christina Rocque da Motta

Mesmo que não me vejas,
eu caminho ao teu lado.
Passos sem som,
água sem música,
luar a deslizar sobre as florestas,
vento úmido contra paredes ruídas.
Por isso temos sido o que somos:
vastos sem termos partido,
infinitos sem abandonar nosso íntimo,
comovidos, mesmo sem encontrar as respostas.
Eu teria te respondido,
mas não me ouvias mais.
Sentei-me perto de ti
e pus minha mão sobre a tua –
tua mão fria dentro da minha.
Por trás de mim, outra tarde terminava.
Nenhum de nós saberá.
Te darei o que é teu.
O que é meu, eu não possuo.

CONCEIÇÃO 63 – Orlando Tejo

Rua da conceição, sessenta e três
(a artéria tem o ar de um cais comprido)
aqui, anos sem fim tenho vivido
buscando a infância azul que se desfez.

Talvez seja isso um sonho, mas talvez
este meu velho abrigo tenha sido
da mesma argila minha construído,
porque é a mesma a nossa palidez!

Ele a mim se assemelha: é ermo e trist.
No jardim, no quintal, no chão, no teto
em tudo a mesma semelhança existe.

No tempo, entanto, aos céleres arrancos,
o seu telhado vai ficando preto
e os meus cabelos vão ficando brancos.

AMOR DE QUALQUER CANTO - Márcia Carrano Castro




fazer poema
é ficar vinícius
com entornos
de chopes
amigos
violões
homens e mulheres
passando lúbricos
com o mar de fundo.

poema sério
não é poema:
é grito agonístico
é alma esfacelada.

poema mesmo
é ébrio de paixão
vida
cor-
-ação
e você:
sinfonia inacabada
desfilando diante de meus olhos
eternamente apaixonados
em qualquer canto do tempo.

MEU DESEJO – Leodegária de Jesus


Não quero o brilho, as sedas, a harmonia
Da sociedade, dos salões pomposos,
Nem a falaz ventura fugidia
Desses festins do mundo, tão ruidoso!

Prefiro a calma solidão sombria,
Em que passo meus dias nebulosos;
Sinto-me bem, aqui, à sombra fria
Da saudade de tempos mais ditosos.

Eu quero mesmo, assim, viver de lado,
Das multidões passar desconhecida,
Me alimentando de algum sonho amado.

Nada mais quero, e nada mais aspiro:
Teu casto afeto que me doira a vida,
Meus livros, minha mãe e meu retiro.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

O POETA – Alceu Valença

O poeta não cresce, permanece imaturo,
Palhaço que mendiga riso e aplauso,
Sofrido, doído bem mais que inseguro,
Tristonho, carente, malandro e otário.

O poeta é sombrio, sozinho, noturno,
Um guará, um morcego, uma coruja.
Vive em dias castigados pela chuva,
A fazer versos tristes e encharcados.

O poeta vê seu verso atropelado
Pela rima, pelo som, pelo fonema.
Por e-mails, mensagens, telefonemas,
Por alguém que já pertence ao passado.

O poeta usa dor em seus poemas,
Sobretudo nas frias madrugadas.
Entre copos, garrafas e tragadas,
Ele chora para a amada sentir pena.
 
Quem sabe esse ser angustiado
Seja fruto de pesadas lembranças
Vida, traumas, desejos, inseguranças
Escondidas em gavetas do passado?

LIBERDADE – J. G. de Araújo Jorge

A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.

Ela é o sol dos caminhos! Ela é o ar
que enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.

Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.

Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.

Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta!