domingo, 30 de junho de 2019

LIÇÃO DE CASA – Talis Andrade

Pernambuco todas as vezes que se revoltava
lhe cortavam um pedaço de terra
e arcabuzavam os libertários
os corpos enterrados
na Igreja de Santo Antônio
Os nascidos pobres enforcavam
os corpos atirados aos cães
Pernambuco aprendeu a lição
Para conservar o chão
que restava se aquietou
Lavou o sangue que ficou
e nunca mais pensou em revolução

IDENTIFICADO RECIFE – Juareiz Correya

hoje amanheci domingo
estou cedo pelo Recife deserto
as possibilidades são raras
nesta cidade que eu sou:
o sol do atlântico pode me devorar
ou a chuva do capibaribe me apodrecer.
ninguém transita ou veicula sorrisos
não chega ou se despede ninguém cotidiano
tudo sou eu que parei e descanso mortomente.
a cidade que eu sou entardecerá cinemas
crepusculabrirá bares
travestidas boates sexuais passeios
passagens noite a dentro.
amanhãserei primeiro
segunda feira
dia que te uso e mascateias

O QUE SINTO POR TI É TÃO DIFÍCIL – Idea Vilariño

O que sinto por ti é tão difícil.
Não é de rosas abrindo-se no ar,
é de rosas abrindo-se na água
o que sinto por ti. Isto que roda
ou se quebra com tantos gestos teus
ou que com tuas palavras despedaças
e que logo incorporas em um gesto
e me invade nas horas amarelas
e me deixa uma doce sede dobrada.
O que sinto por ti, tão doloroso
como pobre luz das estrelas
que chega dolorida e fatigada.
O que sinto por ti, e que no entanto
anda tanto que às vezes não chega.

SEDE - Susana Thénon

Sei que tua sede se estendeu
para além do mais distante fio d"água:
tua é a sede dos verões,
a que habita na garganta do meio-dia.
Faz muito tempo que o sal
ancorou em tuas vísceras
e é ali onde se dá de beber
o lábio vermelho de nosso atos impunes.
Sim um castigo foi criado
é o do teu silêncio
que grita mais alto que as palavras.
Sim um castigo foi criado
é o de permanecer
como uma cega
em uma selva de olhares.

BAINHA ABERTA - Astrid Cabral Félix de Sousa

Crava em meu corpo essa espada crua.
Quero o ardor e o êxtase da luta
em que me rendo voluntária e nua.
Meu temor é a paz pós-união:
desenlace derrota solidão.

QUANDO UM DIA ESTIVER MORTA – Marly de Oliveira

Quando um dia estiver morta
e sobre mim caírem os adjetivos mais ternos,
não vou mover um dedo
de dentro do meu silêncio:
vou desdenhar do eterno
o que sempre chegou tarde,
demais, quando já nem era preciso.

AS PROEZAS DE UM NAMORADO MOFINO – Leandro Gomes de Barros

Sempre adotei a doutrina
Ditada pelo rifão,
De ver-se a cara do homem
Mas não ver-se o coração,
Entre a palavra e a obra
Há enorme distinção.

Zé-pitada era um rapaz
Que em tempos idos havia
Amava muito uma moça
O pai dela não queria...
O desastre é um diabo
Que persegue a simpatia.

Vivia o rapaz sofrendo
Grande contrariedade
Chorava ao romper da aurora
Gemia ao virar da tarde
A moça era como um pássaro
Privado da liberdade.

Porque João-mole, o pai dela
era um velho perigoso,
Embora que Zé-pitada
Dizia ser revoltoso,
Adiante o leitor verá
Qual era o mais valoroso.

Marocas vivia triste
Pitada vivia em ânsia,
Ele como rapaz moço
No vigo de sua infância,
Falar depende de fôlego
Porém obrar é sustância.

Disse pitada a Marocas,
Eu preciso lhe falar
Já tenho toda certeza,
Que é necessário a raptar,
À noite espere por mim
Que havemos de contratar.

Disse Marocas a Zezinho:
Papai não é de brincadeira,
Diz Zé-pitada, ora esta!
Você pode ver-me as tripas,
Poré não verá carreira.

Diga a que hora hei de ir,
Eu dou conta do recado
Inda seu pai sendo fogo,
Por mim será apagado,
Eu juro contra minh’alma
Que seu pai corre assombrado.

Disse Marocas, meu pai
Tem tanta disposição
Que uma vez tomou um preso
Do poder de um batalhão,
Balas choviam nos ares,
O sangue ensopava o chão.

Disse ele, eu uma vez
Fui de encontro a mil guerreiros,
Entrei pela retaguarda,
Matei logo os artilheiros,
Em menos de dez minutos
O sangue encheu os barreiros.

Disse Marocas, pois bem
Eu espero e pode ir,
Porém encare a desgraça,
Se acaso meu pai nos vir,
Meu pai é de ferro e fogo,
É duro de resistir.

Marocas não confiando
Querendo experimentar,
Olhou para Zé-pitada
Fingindo querer chorar,
Disse meu pai acordou,
E nos ouviu conversar.

Valha-me Nossa Senhora!
Respondeu ele gemendo,
Que diabo eu faço agora?!...
E caiu no chão tremendo,
Oh! Minha Nossa Senhora!
A vós eu me recomendo

Nisso um gato derrubou
Uma lata na dispensa,
Ele pensou que era o velho,
Gritou, oh!, que dor imensa!.
Parece qu’stou ouvindo
Jesus lavrar-me a sentença.

A febre já me atacou,
Sinto frio horrivelmente.
Com muita dor de cabeça,
Uma enorme dor de dente,
Esta me dando a erisipela,
Já sinto o corpo dormente.

Antes eu hoje estivesse
Encerrado na cadeia,
De que morrer na desgraça,
E d’uma morte tão feia,
Veja se pode arrastar-me,
Que minha calça está cheia.

Por alma de sua mãe,
E pela sagrada paixão,
Me arraste por uma perna
E me bote no portão,
A moça quis arrastá-lo,
Não teve onde pôr a mão.

Ela tirou-lhe a botina,
Para ver se o arrastava,
Mas era uma fedentina,
Que a moça não suportava,
Aquela matéria fina
Já todo o chão alagava.

Disse a moça: quer um beijo?
Para ver se tem melhora?
Ele com cara de choro,
Respondeu-lhe, não, senhora,
Beijo não me salva a vida,
Eu só desejo ir-me embora.

Então lhe disse Marocas,
Desgraçado!... eu bem sabia,
Que um ente de teu calibre,
Não pode ter serventia.
Creio que fostes nascido
Em fundo de padaria.

Meu pai ainda não veio
Eu hoje estou sozinha,
Zé-pitada aí se ergueu,
E disse, oh minha santinha!
A moça meteu-lhe o pé,
Dizendo: vai-te murrinha!

E deu-lhe ali uma lata,
Dizendo: está aí o poço,
Você ou lava o quintal
Ou come um cachorro ensolso,
Se não eu meto-lhe os pés
Não lhe deixo inteiro um osso.

Disse ele, oh! meu amor!
O corpo todo me treme,
Minha cabecinha está,
Que só um barco sem leme,
Parece-me faltar o pulso,
O Anjo da Guarda geme.

Então a moça lhe disse:
O senhor lava o quintal
Olhe uma tabica aqui!...
Lava por bem ou por mal,
Covardia para mim,
É crime descomunal.

E lá foi nosso rapaz
Se arrastando com a lata,
A moça ali ao pé dele,
Lhe ameaçando a chibata,
Ele exclama chorando
Por amor de Deus não bata.

Vai miserável de porta
Quero já limpo isso tudo,
Um homem de sua marca
Pequeno, feio e pançudo,
Só tendo sido criado
Onde se vende miudo.

Disse o Zé quando saiu:
Eu juro por Deus agora,
Ainda uma moça sendo
Filha de Nossa Senhora,
E olhar para mim, eu digo:
Degraçada, vá embora.

A UM OTIMISTA - Antônio Augusto de Lima

Pensas que são inteiramente nossos
nossos corpos de argila ? Não no creias.
Para reter a vida, em vão anseias:
dela não guardarás sequer destroços.

Não tens, fingido herdeiro de colossos,
destinado a guardar coisas alheias,
nem o sangue que corre em tuas veias,
nem a sutil medula de teus ossos.

Uma voz noutra voz reproduzida,
reproduzindo antiga voz perdida,
o eco responde à voz — eco também...

Ris-te da sombra que refletes ? Ri-se
também de ti a sombra: - quem te disse
que não és - olha atrás! - sombra de alguém?

SONETO - Aurélio Buarque de Holanda Ferreira

Amar-te- não por gozo da vaidade,
Não movido de orgulho ou de ambição.
Não à procura da felicidade,
Não por divertimento à solidão.

Amar-te - não por tua mocidade
-Risos, cores e luzes de verão-
E menos por fugir à ociosidade,
Como exercício para o coração.

Amar-te por amar-te: sem agora,
Sem ontem, sem futuro, sem mesquinha
Esperança de amor sem causa ou rumo

Trazer-te incorporada vida fora,
Carne de minha carne, filha minha,
Viver do fogo em que ardo e me consumo.

sábado, 29 de junho de 2019

CONTOS E POEMAS DE RAFAEL ROCHA

Conheçam e sejam seguidores do mais novo blog de Rafael Rocha, jornalista, escritor e poeta pernambucano do Recife 
 
CONTOS E POEMAS DO RAFA 
https://contosepoemasdorafa.blogspot.com/

INFÂNCIA – Henriqueta Lisboa

E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
- batendo, batendo assombrado!

PUXEI A MANGA DA CAMISA - Martha Medeiros

puxei a manga da camisa um pouco pra cima
perto do cotovelo, e abri o botão calmamente
como se fizesse isso todo dia na tua frente
não te olhei como amiga nem professora
e não liguei para a pouca idade que tinhas
eu era mais madura e você mais coerente
tinha certeza de tudo mas não se mexia
passei a mão no teu cabelo
te beijei na testa, no queixo
beijei tua nuca e tua boca
e fui a primeira mulher nua da tua vida

ESTA MANHÃ ENCONTREI O TEU NOME - Maria do Rosário Pedreira

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

A METÁFORA – José Luís Peixoto

No ano passado
escrevi um poema
que começava assim:
"sinto a lâmina do teu ciúme no meu peito"
- era uma metáfora, claro.
E não suspeitei.

Agora,
que me espetaste a faca de descascar batatas entre as costelas,
único desfecho lógico para o nosso amor;
agora, que sinto a lâmina
e o sangue morno a alastrar-me na camisa,
sei, finalmente e tarde demais,
a fraca expressividade das metáforas.

Por isso,
se ainda gostares um bocado de mim,
pede para, na segunda edição,
alterarem o verso para:
"sinto o teu ciúme como uma lâmina no meu peito".

COMO QUEIRAS, AMOR – Jorge de Sena

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranqüilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de mal contente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárnio, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, Amor, como tu queiras.

OS QUE VINHAM DA DOR – Sebastião da Gama

Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.
Tudo que era difícil era fácil
aos que vinham da Dor diretamente.

A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor diretamente.

Os que vinham da Dor diretamente
eram nobres de mais pra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!
Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor diretamente.

terça-feira, 25 de junho de 2019

A GRAÇA - Déborah de Paula Souza

Diante da poesia de tudo
é que eu enfim me ajoelho
e aperto os olhos
pra focar seu lume

Estas palavras nunca foram minhas
— a poesia é dona de si mesma
e distribui suas senhas faiscantes

Estou a seus pés
e a mãe do mundo me abençoa
ela tem suas vaidades, brinca comigo
me afaga e me atordoa

Vive em seu altar
em luxo de montanhas e placentas
repleta de diamantes

São dela todas as coisas
as palavras, as nascentes, as faíscas
este instante

ESFINGE - Solange Firmino

Decifra meu enigma
e toda a essência
por trás do verso.

Segue pela trilha do poema
e revela a metáfora escondida.
Repousa sem tédio
no meu ritmo.
Descobre o segredo que habita
onde me esquivo,
onde a pergunta é só disfarce,
reverso.

Se me escondo,
é para devorar melhor.

O CORPO AMOROSO DO DESERTO - Micheliny Verunschk

Teu corpo
branco e morno
(que eu deveria dizer sereno)
é para mim
suave e doloroso
como as areias cortantes
dos desertos.
Que importa
que ignores minha sede
se tua miragem
é água cristalina.
E a miragem eu firo com mil línguas
e cada uma é um pássaro
a bebê-la.
Ferroam a minha pele
escorpiões de fogo e sol
com seu veneno
e vejo,
magoada de desejo,
os grãos tão leves
indo embora ao vento.

AS FORMAS DO BARRO - Aleilton Fonseca

Eu trago as formas do barro
esculpidas em minhas mãos:
o cheiro molhado de argila
umedece as minhas palavras
e o sol que vem do passado
revela um segredo guardado.

A mão cumpre o risco no ar
e os dedos beneficiam a argila,
mergulhando no gesto vertical.
A esquerda recebe a dádiva
e juntas compartilham o corpo
medido em areia, argila e água.

O verbo nas mãos se enconcha,
se eleva, beija o ar em curva,
e sobre o vazio da forma passa
contra a madeira sem reclame.
A direita alça o arco de arame
e as aparas se despem da massa.

Assim se repete a procura
em novo bolo que se enforma:
vira-se a forma sobre a mesa
de trabalho do artesão,
e feito o asseio de areia,
dois poemas brotam no chão.

De dois em dois, em soma de pares
os montes de argila se multiplicam.
E o oleiro, sem que se repare,
contempla as paredes do futuro,
que hoje, por certo, ainda abrigam
os seus sonhos riscados num muro.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

CANSAÇO – Oliverio Girondo

Tradução de Jefferson Bessa

Cansado.
Sim!
Cansado
de um usar um só baço,
dois lábios,
vinte dedos,
não sei quantas palavras,
não sei quantas recordações,
grisalhas,
fragmentadas.

Cansado,
muito cansado
deste frio esqueleto,
tão pudico,
tão casto,
que quando se desnuda
não saberei se é ele mesmo
que usei enquanto vivia.

Cansado.
Sim!
Cansado
por precisar de antenas,
de um olho em cada omoplata
e de uma cauda autêntica,
alegre,
desatada,
e não desta cauda hipócrita,
degenerada,
pequena.

Cansado,
sobretudo,
de estar sempre comigo,
de me encontrar a cada dia,
quando termina o sono,
ali, onde me encontro,
com o mesmo nariz
e com as mesmas pernas;
como se não desejasse
esperar a baixa maré com uma cútis de praia
oferecer, sob o orvalho, os seios de magnólia,
acariciar a terra como um ventre de lagarta
e viver, uns meses, dentro de uma pedra.

SONETO – Geir Campos

Talvez não venham a saber jamais
quanto de mim em ti carregas quando
vais ter com ela e fico só pensando
no que costuma haver entre os casais:

em pensamento vou a quanto vais
e quando a olhas eu a estou olhando
e quando a tocas eu a estou tocando
e teus genitais são meus genitais...

Quando chegas alfim de estar com ela
vejo teus olhos e ouço os olhos dela
dizendo coisas que ela a mim não diz:

vens leve e é também minha essa leveza
- e a alegria que em mim acham acesa
é mais um jeito meu de ser feliz.

ORGASMO – Alberto da Cunha Melo

Todo corpo, em seu esplendor,
divide em duas esta vida,
mas este êxtase existe mesmo
para ocultar uma descida

da carne, no único momento
em que do cosmo é instrumento;

truque do eterno é todo amor:
toca por baixo o fogo alto
que aquece o sonho ao sol se pôr,

porque logo devolve aos dois
o nada de antes e depois.

DEFINIÇÃO DE AMOR – Gregório de Matos

Mandai-me, Senhores, hoje, 
que em breves rasgos descreva 
do Amor a ilustre prosápia, 
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma, 
dizem que do mar nascera, 
que pegam debaixo d'água 
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro 
seu pai, onde Vênus bela 
serviu de bigorna, em que 
malhava com grã destreza.

Que a dois assopros lhe fez 
o fole inchar de maneira, 
que nele o fogo acendia, 
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora, 
que o Amor é fogo, e bem era 
tivesse por berço as chamas 
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca, 
ou Semideus se nomeia, 
cujo céu são esperanças, 
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina, 
Um Rei, o mundo sopeia, 
sem mais tesouro que um arco, 
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa, 
a seta talvez de esteira, 
despido como um maroto, 
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém, 
que anda hoje nestas eras 
com o cu à mostra, jogando 
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara, 
por deixar o outro alerta, 
por detrás à italiana, 
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta, 
ou porque vende gazetas 
das vitórias, que alcançou 
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas 
cremos por coisa mui certa, 
pois nos dá os dias santos, 
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam 
é tudo mentira certa, 
mas eu tomara ter junto 
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa 
e num pensamento chega 
assistir hoje em Cascais 
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro 
com duas porradas tesas: 
e é bem, que no Amor se gabe, 
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno. 
Isto é Cupido? má peça. 
Aconselho que o não comprem 
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama, 
este, que vidas enterra, 
este, que alvedrios prostra, 
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira, 
este, que roubou a Helena, 
este, que queimou a Troia, 
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco, 
este, que o ouro despreza, 
faz liberal o avarento, 
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco, 
faz pazes, ateia a guerra, 
o frade andar desterrado, 
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça, 
ir mil vezes à janela, 
abrir portas de cem chaves, 
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados, 
trepar chaminés e gretas, 
chorar lágrimas de punhos, 
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes, 
perder a vida em pendências, 
este, que não faz parar 
oficial algum na tenda.

O moço com sua moça, 
o negro com sua negra, 
este, de quem finalmente 
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza, 
uma pena, que receia, 
é um fel com mil doçuras, 
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata, 
doce veneno, que enleia, 
uma discrição, sem siso, 
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre, 
uma liberdade presa, 
desvelo com mil descansos, 
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse, 
uma posse, que não chega, 
desejo, que não se acaba, 
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d'alma, 
da razão uma cegueira, 
uma febre da vontade, 
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura, 
uma chaga, que deleita, 
um frenesi dos sentidos, 
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina, 
faísca emboscada em pedra, 
um mal, que não tem remédio, 
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta, 
um perigo, que não deixa, 
um estrago, que se busca, 
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala, 
pena, que sempre atormenta, 
manjar, que não enfastia, 
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça, 
um engano, que contenta, 
um raio, que rompe a nuvem, 
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira 
àquelas entranhas mesmas, 
que segurou o veneno, 
e que o mesmo ser lhe dera.

Um áspide entre boninas, 
entre bosques uma fera, 
entre chamas salamandra, 
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata, 
lince, que tudo penetra, 
feiticeiro, que adivinha, 
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo, 
uma invenção, uma teima, 
um melindre, uma carranca, 
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago, 
um arrufo, e uma guerra, 
hoje volta, amanhã torna, 
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças, 
de ciúmes vara e meia, 
um sim, que quer dizer não, 
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha, 
um folgar muito deveras, 
um embasbacar na vista, 
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes, 
dormir a olhos alerta, 
que estes dizem mais dormindo, 
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago, 
uns receios de uma ofensa, 
um dizer choro contigo, 
choramingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias, 
passar cabelos por prenda, 
das palmitos pelos Ramos, 
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João, 
alcachofras na fogueira, 
ele pedir-lhe ciúmes, 
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos, 
rendas da moda francesa, 
sapatos de marroquim, 
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra, 
ou lhe suceder ter freira; 
pede-vos por um recado 
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor! 
isto é amor? é quimera, 
que faz de um homem prudente 
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira 
chamar-lhe-ei, mais depressa, 
fogo selvagem nas bolsas, 
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso, 
do coração bertoeja, 
sarampo da liberdade, 
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira, 
vida, saúde e fazenda, 
e se hemos falar verdade 
é hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice, 
ou tudo uma borracheira, 
que se acaba co'o dormir, 
e co'o dormir começa.

O Amor é finalmente 
um embaraço de pernas, 
uma união de barrigas, 
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas, 
uma batalha de veias, 
um reboliço de ancas, 
quem diz outra coisa, é besta.

ESTAR – Álvaro Alves de Farias

Esferográficas cortam palavras
no céu da boca, como facas:
assim, letras inertes cedem ao tempo
e calam sílabas agudas.

Pouco áspero
será o gomo de teu verso,
esse avesso do gesto,
a poesia na xícara de veneno.

Pouco o nítido sentir
o líquido
de teu pressentimento
como se fosse possível
calar para sempre.

Nada senão a gilete enfiada na pele,
a face neutra do olhar enfermo:
enfim a planta na raiz de teu pomar,
enfim
o fim da espera, do estar.

sábado, 22 de junho de 2019

CANÇÃO DE OUTONO – Paul Verlaine

Tradução: Guilherme de Almeida

Estes lamentos
Dos violões lentos
     Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
     De sono.

E soluçando,
Pálido, quando
     Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
     De outrora.

E vou à toa
No ar mau que voa.
     Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
     E morta.

O ALBATROZ - Charles Baudelaire

Tradução de Ivan Junqueira

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.