quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

SIGNO DA ANATOMIA – Pádua Fernandez

existe um coração na pele;
não é a dor,
mas como a dor no sangue ferve,
no corpo o obriga ao labirinto,
sob a pele o cárcere infindo
menos se a fere;

há uma víscera nos olhos;
não é a dor,
imita a dor em seus esforços
de não ver exceto o profundo
nada que descortina o mundo
até os ossos;

um osso rói o coração;
não é a dor,
com a dor divide esse pão,
lixo expulso da lata e fora
do esgoto e nem mesmo o devora
faminto cão;

existe uma pele no sangue;
não é a dor,
desnuda a dor a todo instante
em que recobre a cicatriz
de haver um coração, matriz
do frio cortante;
sexos vários pulsam, no sexo;
não é a dor,
por certo, que os une em perverso
idílio entre ânsia e vazio,
máscara e signo ou, em equívoco,
une-os por verso;

quantos haveres, e quão ricos,
não é a dor
quem os guardará assim vivos
do nada que aos corpos agrega
outros corpos em posse cega
e já perdidos.

Não é a dor
a palavra dita no corpo
que é a dor.

MEU CORPO SE RESGUARDA DO PECADO - Nilza Menezes

Tenho medo do inferno
e a todo momento me policio
para não cair em tentação.
Santos me fiscalizam desde criança
ameaçando meu corpo
que se transformará em pó.
Pela vida tem sido possível
não matar, não roubar
mas meus pensamentos e sentimentos
tem superado
o que me foi delimitado.

TALVEZ – Márcia David

Talvez seja tarde, e aquela parte,
a gente não saiba mais enxergar.
Talvez seja cedo, mas vem o medo,
e a gente não queira com ele lidar.
Talvez a preguiça, revele a injustiça
de não alcançarmos um outro lugar.
Talvez cada um, num lugar comum,
seja fadado a sempre almejar.
Talvez por engano, debaixo do pano,
a gente ainda espere algo mudar.
Talvez sendo assim, se arme um estopim,
pois minha alma, não sabe calar.

SONETO DE INFÂNCIA – Leandro Rodrigues

O país adormece. Tudo faz-se escuro...
Entre correntes e escombros,o menino desperta
Acuado sem saber onde, cercado por muro
E em toda a parte uma tristeza abstrata e incerta

O menino inventa o dia, as horas e inseguro
traça na folha tímidas rimas, compõe-disseca
nas sombras, os sonhos  -  verso mais duro
E segue em país adormecido com a porta aberta,

nas venezianas, o resto de ar - paisagem
no rosto do menino  o soneto que não se faz
a dureza das noites mais frias e a imagem

de um lugar além, palavra distante
o punhal que corta não o corpo, mas a alma
na cicatriz e inerte, o menino adormece, confiante.

SONETO (I) - Juvêncio Martins Costa

Na alvorada da vida — o sofrimento
Me punge o coração enternecido,
E concentro no peito esvaecido
Os suspiros e ais do sentimento!

Bem como a flor votada a esquecimento
Assim é meu amor constante e fido. . .
Ninguém perscruta meu penar sentido,
A cisma que me aflue ao pensamento!

Fenece â crença, me maltrata a lida
De um presente cruel, e a sorte odeio,
Detesto os sonhos da ilusão perdida!

E a esperança, que é luz — d'ela descreio!
Maldigo o meu porvir, e odiando a vida
— Na dor do coração a morte leio.

AFERRADO - José Weiss

Casco escuro, proa alta
o menino, ao lado do pai,
ia ver navios ancorados no cais.
Lá está um agora,
da janela do escritório
é possível enxerga-lo
quase por inteiro
Um navio tem soberba serenidade
desperta invejas
em breve, singrará outra vez
Ele não navega,
é um Ulisses sem Penélope
para quem voltar
Contenta-se em
ver de longe o navio
volta ao trabalho
e constata que
o café já está frio.

SOB UM CÉU DE ACASOS – Celia Mussili

há um tempo em que as ilusões se dissipam
e a corda que nos sustentava se rompe
há um tempo em que as hastes se curvam
derrubando as flores soberbas
os botões que seriam buquês

há um tempo em que as pedras trincam
raridades se partem
achados se perdem

e ninguém sabe aonde foram parar os poemas
os guarda-chuvas
os sortilégios
os pássaros
as bonecas das meninas mortas

os chapéus que sumiram na ventania
há um tempo um tempo um só tempo
depois não há mais tempo
porque soaram as sirenes que proíbem a fantasia
a realidade não acolhe planos|
sob um céu de acasos e sonhos minados

O CANTO - Alberico Carneiro

a morte chega e diz: stop!
e o canto avança no seu galope.

o corpo tomba. O invólucro não soma
é o canto em ascese do seu própria soma.

que a morte é sempre pretérita ao canto,
quando ela gera seu assédio e espanto.

de Edgar Allan Poe, Villon ou Pope
a morte é antes, que o canto é izope
e salta adiante no seu galope.

QUEBRA MOLA - Acionildo Albuquerque Slva

Subiu, nunca viu nada.
Sempre foi acostumado
a olhar de cima
passar pelos sonhos
atropelando os nossos desejos.

Queria apenas saber quantos
centímetros são necessários
para deter seu burgo e carruagem.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

ASPIRAÇÃO – Gastão Torres

Vou de nova poesia
Sem limite de universo,

Vou ser rico em quatro estâncias
de um poema poliverso.

Não sou apenas um vate,
Unidade luminar,
Sou vate com sobrecarga,
Com potência de milhar.

Já não basta ser um vate,
Quero ser um quilovate;
Maiores choques por tato
Melhores versos portanto.

Já cansado de servil,
Vou mostrar novo serviço;
Já cansado de ser vate
Agora quero Cervantes.

PERANTE A DÚVIDA - Galba de Paiva

Penso. E que sou? Diz-me a vaidade — tudo!
Mas a razão imperturbável — nada!
E olhando a vida fico absorto e mudo,
Vendo-a de sonhos puros constelada.

A inspiração segreda-me contudo:
“Canta! Eleva-te á Patria-Iluminada…
“E o previdente espírito sisudo:
“Chora! Se és pó, é certa a derrocada…”

Ah! quanta cousa para ser pesada,
Nessa comedia, nesse grande entrudo,
Onde a alma vive sempre enclausurada!

Mas do termo final já não me iludo:
—Basta a triste certeza de ser nada,
Basta a vaga esperança de ser tudo…

ANJO PECADOR – Valdeck Almeida de Jesus

Sou capeta o dia todo
Sou Deus de vez em quando
Fumo, bebo, roubo e mato
Finjo ser santo, por trás do manto.

Sou puto, confuso, mentiroso
Desafio às leis e regulamentos
Desobedeço, sempre, a tudo
Iludo, engano, sou um jumento.

Uso drogas, me masturbo
Faço tudo o que é proibido
Uivo louco na libido.

Não tenho medo do inferno
Só não quero viver no inverno
De uma vida sem poesia.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

TERRA – Isabel Hirata

Para Vladimir Herzog

Eu quero teu corpo moído,
de pancadas.
Eu quero teu cérebro torturado.
Eu quero tuas mãos inutilizadas.
Eu quero teu corpo moído,
sufocar com beijos, teus gemidos.
Eu quero ouvir bem baixinho,
tua voz a me dizer:
— Eu só queria a liberdade...
Te guardarei por toda eternidade
Quando de você só restar
Para os que te amaram
A dor de tua perda.
E esta tremenda saudade!
Abrirei minhas entranhas
Para que nelas sejas depositado
Porque em mim germinará a semente
Teu corpo será passado
Teu nome será presente

OUTROS RESÍDUOS – Heitor Ferraz Mello

Fica um par de brincos
em cima da cômoda.
Fica um elástico solto
como retrato, na gaveta.

Fica a marca da cabeça
deitada no travesseiro
(às vezes um fio de cabelo
para restituí-la em silêncio).

Fica a lua — a meia-lua —
que banal comparei
ao seu sorriso (lembra?).

Fica você que caminha.
Seu corpo indeciso muda
e mudo se desmembra.

TRISTES HOMENS AZUIS - Marcos Prado

não é blues, tristes, não é mesmo 
a tristeza não faz um homem azul 
o branco é branco,o negro é negro 
ninguém é triste, não há blues 
só existem, tristes, os tristes homens azuis

eles se vestem de branco e de negro 
e os outros veem azul 
porque não são brancos nem negros 
os tristes homens azuis

ninguém nasce azul 
não se põe no mundo 
alguém azul 
mas quando a noite baixa 
se levantam 
os tristes homens azuis

A TUA BOCA ADORMECEU – Cruzeiro Seixas

parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.

Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.

E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.

As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.

Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.