sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

EU – Valdeci Ferraz

Eu sou
A noite sem a madrugada.
Sou uma estrela
Em busca de uma constelação.
Sou uma folha solta no vento.
Sou o vento sem direção.
Eu sou a sombra de uma voz
Que canta para os esquecidos.
Sou o verso preso nas flores
Que o beija-flor libertou.

Eu sou o canto da ave aflita
Em busca do ninho roubado.
Eu sou a nota de um acorde
Esquecido na partitura.
Sou o resumo de um livro sem memória.
Sou o marinheiro que anseia morrer no mar.
Sou o lamento de antigas crenças
Cujos deuses foram esquecidos.

Sou tudo
E sou nada.
Caminho por uma estrada
Iluminada por vaga-lumes embriagados
Onde os homens ergueram cruzes nas margens
Para guiar os seus deuses.
Sou o silêncio que grita nas matas.
Sou o sussurro da noite clamando pelas estrelas.
Sou o último grito de um condenado.
O aborto de um sonho nunca sonhado.

BREVE – Naomi Ayala

Tradução de Rafael Rocha
.......
Aqui a fome morre -
no canto, atrás das redes,
- Como se a morte fosse r
ápida,
r
ápida como uma bala.

Aqui morre a esperança, morre -
debaixo da árvore em janeiro,
na sua bolsa de gelo,
nas ruas agredidas,
engolindo sons de sirenes -

malditas ambulâncias

- Nos becos escondidos,
nas casas sem saídas,
na pestilência dos edifícios.

A esperança morre
como uma criança morre
- como morrem
todas as crianças

Morrem como o teto perfurado sobre a cama
no ciclone de tiroteios.

Eles morrem como a raiva -
como se a morte fosse breve,

breve como a vida,
breve como um sonho,

ou uma bala, sim.

ARRUADO - RAFAEL ROCHA

a rua no caminho da minha casa
está vazia
e eu vindo trôpego do bar
tento escrever um poema
que não seja igual a tantos outros
que seja igual a mim
e aos caminhos que trilho

antes de chegar em casa
acendo um cigarro
penso e penso e penso
(sou um livre pensador)
mas penso devagar
sobre os tantos que não têm
casa ou cigarro ou cerveja ou mulher

de repente
as luzes da rua se apagam
a chuva vem formidável
e eu fico a recordar
as tempestades mais antigas
de quando as telhas das casas nessas chuvas
faziam meu pai e meus avós
ficarem com medo

nesse momento de quando se volta
de um boteco ou de um bordel
com uma cerveja gelada na mão
porra! puta merda!
eu percebo a falsidade das dezenas de pessoas
que dizem serem parte de minha vida

e que nos churrascos das histórias
resolvem se ajoelhar a um deus do nada
e orar em cima de uma mesa cheia de comida
dando graças à mentira em que habitam
enquanto do outro lado da rua
crianças gemem de fome...

e eu fico pensando
como meu velho amigo Charles Bukowski
“nos garotos da rua
e no obtenha tudo que puder
isso é democracia
obtenha tudo que puder
isso é ditadura
basta escravizar
ou destruir os desamparados”.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

INFLAMÁVEL – Alexsandro Souto Maior

Ninguém me toque
O calor é de queimar os miolos
As palavras apimentadas
Quão gás lacrimogêneo
No meio da multidão
Dispersa a opressão
Há veneno nos meus pés e nas minhas mãos
Há desejos quentes nos meus olhos negros
Falo brasas
Sopro fogo
Aceno dores e flores
Penso paixões e vulcões
Faço carnaval no meio-dia no teu quintal
E motim no centro do Distrito Federal
Já avisei
O que sai de mim é fogo
Ninguém me toque!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

SÓ UM SORRISO – Antonio Carlos Gomes

Tu mereces uma poesia
Pois, foste a única coisa na noite
Que minha mente encantou.
Apareceste entre o chope
Que evapora alcoolizando o ar;
Entre a fumaça
Que, na penumbra, nos irrita a vista,
Entre olhares de mulheres vulgares
Que trazem noites de prazer por tostões.
Encobrindo a lua, outrora inalcançável,
Hoje cercada de Apolos e Sputiniks,
Apareceste.
Mas... Foste só um sorriso,
Tão volátil como o chope,
Ou como os fumos dos cigarros,
Inalcançável que nem fora a lua.
Foste um simples gesto,
Um simples e impalpável momento,
Um momento alheio a noite,
Um momento de vida
Numa noite vazia.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

REJEITADO – Gilson Pereira de Araújo

Nesta manhã, inesperadamente,
A tristeza ofereceu-me uma pausa
E determinou-me a feitura de um verso.
Silencia a angústia e a dor,
Mas não se expressa a alegria.
Vivo da presença, ou ausência,
Daquilo que, inominado, me faz sofrer.
Anseio pela eternidade do que se foi
E padeço o sofrimento do impossível.
Busco o reflexo do sentimento
Que, de dentro de mim, se projeta.
Percebo o esbarrar naquilo que é só canto.
A negativa da palavra que se esboça
E conduz-me a um silêncio de explosiva solidão.
Falsa pausa de uma tristeza contida
Na construção de ilusório sentimento.
Não me permite um contento.
Não me afaga, com alegria, a vida.
Eis, da obediência, o fruto feito,
Que a nenhuma alma, a nenhum peito,
A infinda fome sacia. Eis o verso que rejeito.

domingo, 19 de janeiro de 2020

CANÇÃO DA VIDA PROFUNDA - Porfírio Barba Jacob

Tradução de Abgar Renault
...................
Há dias em que somos tão móveis, tão móveis
tal breve paina solta aos ventos e ao azar.
Talvez sob outro céu a glória nos sorria.
Clara, undívaga, aberta é a vida como um mar.

E há dias em que somos férteis, e tão férteis
como o campo, em abril, que treme de paixão:
sob o próvido influxo de chuva interior
da alma brotam em nós florestas de ilusão.

E há dias em que nós — tão sórdidos, tão sórdidos! —
somos a entranha de obscuro pedernal:
surpreendem-nos da noite as numerosas lâmpadas,
com moedas rútilas taxando o Bem e o Mal.

E há noites em que somos plácidos, tão plácidos...
(meninice do poente! ah! lagoas de anil!)
que um verso, um trino, um monte, um pássaro que cruza,
as nossas próprias penas nos fazem sorrir.

E há dias em que somos lúbricos, tão lúbricos,
que nos depara em vão sua carne a mulher;
depois de acariciarmos um quadril e um seio,
à redondez de um fruto eis-nos a estremecer...

ÚLTIMO POEMA DE STEFAN ZWEIG

Tradução de Manuel Bandeira
................
Suave as horas bailam sobre
O cabelo branco e raro.
A áurea taça a borra cobre:
Sorvida, eis o fundo, claro!

Pressentimento da morte
Não turba, é alívio profundo.
O gozo mais puro e forte
Da contemplação do mundo

Só o tem quem nada cobice,
Nem  lamente o que não teve,
Quem já o partir na velhice
Sinta — um partir mais de leve.

O olhar despede mais chama
No instante da despedida.
E é na renúncia que se ama
Mais intensamente a vida.

A VOZ – Thomaz Hardy

Tradução de Fernando Py
................
Mulher que muito errou, tanto e tanto me chama
Agora assegurando já não ser como antes
(Quando deixou de ser a que me fora tudo),
Mas igual à do início, em nossos dias lindos.

Será você quem ouço? Então, deixe-me vê-la
Imóvel, como quando fui para a cidade
Onde você me aguardaria; e eu até
Mesmo lhe conhecia a saia azul-celeste!

Ou é somente a brisa, em sua indiferença,
Que atravessa a úmida campina a me encontrar,
E você sempre envolta em frieza malsã,
Desatenta, abatida, e sem ouvir mais nada?

E assim estou; cambaleante,
Folhas caindo a meu redor,
O vento mal soprando pelos espinheiros
Do norte; e a mulher chamando.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

ÚLTIMO ATO – Rafael Rocha

Do livro “Tudo Pode ser Amor” (2019)
 ......
Desmantelou-se o palco!
A plateia sumiu!
Queimaram a peça teatral
na fogueira das vaidades.
Homens imbecis
apagaram as estrelas,
fechando a cortina
e mudando as falas.

Os atores reais
agora estão nas ruas,
perdendo suas casas
seus filhos e as amadas.
Colocaram na ribalta
uma máscara de ódio
vândala e mordaz
e veraz assassina.

Restaram os espantalhos
dos peixes nas lagoas,
onde aves moribundas
juntaram suas penas
às folhas das árvores mortas.
Só nos resta esperar
as boas sementes criarem raízes,
retomando a terra.

SONO E SONHO – Antonio Carlos Gomes

Quando o sono
Não completou o sonho
E bruscamente
O vivente o acordou
O sono provoca sono
Busca o sonho
Que não terminou.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

PLASMA E SANGUE - Denize Cruz

Enquanto houver abraço
trevo, desvio, picada e medo
enquanto houver margem
desejo, rio, queda d’água e boca
enquanto houver traço
no olhar que descansa
enquanto houver laço
entre o sim e o então

todo corpo será  horizonte.